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sexta-feira, 11 de maio de 2012

"Coisas" da minha vida!

Tive a sorte de nascer numa família estruturada mas filha duma mãe inválida, ou quase inválida. Assim os meus dias começavam com gemidos de dor e acabavam com lágrimas de desanimo. Habituei-me a isso e, como era criança, pensava que tudo era natural, que era assim que as famílias funcionavam. Tive um pai que me tratava com muito carinho e que aliviava, como sabia, esta situação doentia e triste.

O meu pai levava-me consigo para uma loja que tinha, a pouca distancia de casa e onde habitavam alguns familiares, avó e tios, e então era assim: A avó era doente do coração e acabou por morrer ao pé de mim e do médico, pois os  restantes familiares fugiram todos aos gritos. Fiquei eu sozinha com o médico que nada conseguiu fazer para a salvar. Quando o óbito foi confirmado e o médico se foi embora, ninguém se lembrou daquela criança que continuava sozinha naquele ambiente de morte. O tio mais novo que era epilético teve um ataque e a criança que eu era, deixou por momentos a presença da morte, para colocar um lápis, atravessado na boca do tio, para evitar que a língua dele se enrolasse, pois já tinha visto os adultos fazerem isso em outras ocasiões. A tia Hortense, muito amiga da mãe, resolveu ter um ataque de nervos violento, era esquizofrénica não medicamentada. Naquele tempo antigo, as coisas passavam-se assim mesmo, a esquizofrenia era um mal sem tratamento. Havia também a tia Lídia que era surda, que não ouvia quase nada, nem os gritos da irmã nem as convulsões do irmão e o meu querido pai que chorava silenciosamente, na loja, sentado numa saca de batatas, estava extremamente sossegado porque o "anjo da guarda" que era eu, estava no meio daquilo tudo.

Este é um dos episódios de que me lembro e que ainda hoje me dói, pois ficou muito bem gravado na minha memoria. Isto explica a adoração que eu tinha pela casa dos meus vizinhos, do Jão-Jão, da Catila, da Bia e da Avó Bia e também das empregadas, a Talina, a Lélé e a Vita, entre outros que por lá andavam, que me deixavam fazer tudo: os cremes dos bolos que eles vendiam; mexer o alguidar das carnes para os chouriços com os devidos temperos; tratar das galinhas no quintal e também dos coelhos e também dos cães que o Jão-Jão levava para a caça; regar as flores que havia na estufa, lindas de morrer; brincar dentro do carro, um Chevrolet imponente para a época; pôr em montinhos o dinheiro que à noite os homens entregavam depois da venda do pão e dos bolos e era eu que abria o cofre, cheia de importância, porque eu sabia o segredo para abri-lo e só eu podia fazer esse serviço - claro, pensava eu- também era eu que, à noite, namorava um bocadinho, à janela, com o Chico, enquanto a Bia dava os últimos retoques no cabelo. Depois chegava a hora de regressar a minha casa para tomar banho e dormir, mas de manhã, muito cedo, ainda em pijama, descia a minha escada e saia para a casa dos meus amigos, a dois passos, recomeçando tudo de novo tal qual o dia anterior.

Tudo isto que vos conto, não fez de mim uma criança infeliz, pelo contrário, sempre fui alegre, meiga, simpática e com um gosto muito grande de viver. Alguém, um dia mais tarde, já mulher, me chamou vaidosa, por eu dizer que toda a gente gostava de mim. Mas era assim mesmo. Vivi a minha infância e a minha adolescência rodeada da amor!

Deixem-me brincar um pedacito. Então, quando chegou a juventude e a idade adulta, meu Deus, "todos" me amavam e eu só tinha que me deixar amar.

Mimi

9 comentários:

  1. Olá Mimi
    Li este trexo da sua vida e gostei de saber que, apesar da vida lhe ter dado uma vida de criança bastante diferente do que seria suposto ter tido, conseguiu sempre ser feliz! Ainda bem que o amor das pessoas que a rodearam conseguiu fazer de si uma pessoa de bem consigo própria e com a vida. Nem toda a gente tem a força suficiente para ultrapassar certos traumas da infância que por vezes deixam marcas para o resto da vida. Fico feliz por si e se quiser continuar a "brincar um pedacito", conforme diz, porque não o fará? É só querer!
    Um abraço da
    Lourdes.

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  2. Que há males que vêm por bem, toda a gente sabe, e agora mais uma vez se confirma. Ainda bem que, durante muito tempo, alguém foi dizendo "escute, ouça o que lhe estou a dizer, não tenha pressa", ou, também, que alguém, "simpático, a manda calar quando ela está mesmo, mesmo, no momento de uma brilhante ideia": tudo isto contribuiu para, agora, termos a Mimi aqui entre nós, brindando-nos com esta "brilhante ideia" de rememorar uma vivência tão cativante, num estilo quase poético.

    Valeu a pena alguém ter dito à Mimi que se recusava a voltar a ler trabalhos dela para a aula de português: o que ela escrevia, a forma como escrevia, não podia destinar-se só a uma pessoa, tinha de ser levado ao conhecimento de outros, merecia ser partilhado com outros.

    E, assim, estamos a partilhar, aqui, esta sua vivência. Uma vivência, não; várias. Tenho pena de, por ser recente por aqui, não me poder incluir naquele "todos": fosse esse o caso e outro seria este meu escrito. Mas, no final, esse escrito seria igual ao que, assim, é: todos a amamos também. E porque ainda tem muito para dar a quem a ama, esperamos mais.

    José Auzendo

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  3. Ás vezes pensamos que conhecemos bem as pessoas só porque nos cruzamos com elas todos os dias: na escola primária, na professora de bordados e no dia a dia. A verdade é que embora se conheça desde sempre essa pessoa, e sabendo de alguns factos da sua vida, o que se passava da porta da sua casa para dentro era uma realidade a que eu não tinha acesso. Isso estava guardado para os mais intímos . Como a achava sempre descontraída,bem vestida e bonita, na minha cabeça ela era uma fiel representante da felicidade.
    A Mimi pode brincar,mas o certo é que bonitos rapazes bem lhe faziam finca pé e sabem porquê? Porque a Mimi era "linda de morrer", tal como as flores da estufa do Senhor João Carvalho.
    Maria Alexandrina

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  4. Olá Mimi!!
    Excelente história de vida. Gostei muito de ler o seu texto, fez-me recordar os meus tempos de infância. Quando eu e a minha mãe vínhamos ao Sobral era na sua loja que fazíamos as compras, era a sua tia Hortense que nos abria a porta da casa dela, enquanto o seu pai não abria a loja
    Gostaria de lhe dizer muito mais coisas, mas a Alexandrina antecipou-se dizendo-lhe que a Mimi era muito bonita e que vestia muito bem, tinha vestidos lindos.
    Conheci muito bem os seus pais, as suas tias e tio eram pessoas de quem a minha mãe gostava muito. Na altura das festas, em setembro eram as suas tias que nos guardavam o farnel, enquanto íamos à tourada. Já passaram muitos anos mas é sempre bom recordar, porque recordar é viver.
    Mariana

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  5. "resolveu ter um ataque de nervos"
    Sabes foste infeliz ao escrever o episódio desta forma. Que o dissesses assim quando eras miúda eu percebo, mas agora com mais de 70 acho que foste infeliz.
    Um beijinho
    Carolina

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  6. D. Carolina
    Não devemos conhecer-nos, mas deixe-me pedir-lhe que seja um pouco mais tolerante, não tome tudo à letra, tente encarar as coisas da vida um pouco mais ao de leve...Imagine, por exemplo, que a D. Mimi se esqueceu de pôr aspas em "resolveu"...

    E, mesmo sem aspas, a frase "resolveu ter um ataque" é um modo de dizer, uma força de expressão a que não deve dar-se um significado literal. Eu sei que a D. Mimi não precisa que a defendam e eu não escrevi isto para a defender. Escrevi só para lhe fazer, a si, o pedido que fiz no princípio.

    José Auzendo

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  7. Parabens Mimi
    Admiro em si a criança que foi.Um equelibrio que faz inz«veja a muito adulto.Equelibrio quando esteve atenta e aceitou .Esteve atenta ao sofrimento e as coisas menos boas da sua vida ajudou compreendeu cresceu emocionalmente mas mas não ficou por aí.esteve tambem atenta ao amor que lhe ofereceram aceitou-o e foi feliz, que grande lição de vida, bem haja por isso

    Espero mais

    saudações amigas
    suzete

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  8. Amiga Carolina,
    Tu não percebeste o que foi dito no meu texto, nem ao sentido que eu lhe quis dar. "Eu era pequenina, encontrava-me num cenario de morte que era demais para a minha idade, e nesse mesmo cenario tudo estava a acontecer: morte, crises de nervos e até "ataques epiléticos".......
    Tudo ao mesmo tempo e o que eu pretendi que se entendesse é que "até o tio se lembrou de ter um ataque naquela hora". Ninguém servia para nada.
    Era eu que tinha, na minha tenra idade, que fazer tudo...... acalmar os nervos das tias e acudir ao ataque do tio..... isto era demasiado para uma criança, entendes? Disse-o numa perspectiva de criança, numa linguagem de criança, percebes?
    Um abraço amigo da
    Mimi.

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  9. Cara amiga ao ler este seu texto de rercordações,digo-lhe que fiquei perplexo. De facto, neste mundo actual em que parece que as aparências parece serem socialmente mais apreciadas do que o a verdade do realismo, senti-me muito confortável por saber que é possivel ter amizades de Gente mentalmente honesta,capaz de expressar os seus sentimentos e viver as suas realidades com verdade e transparência. Que é capaz de enfrentar o "veredicto" da sociedade não usando para isso "falsos puritanismos" e "o politicamente correcto", mas antes continuar a respeitar-se a si próprio e aos seus amigos, mostrando-se de corpo interno e com verdade.
    Bem haja pela sua postura de verdade e sentimento, pois é a mais uma prova que este País continua a ter gente capaz de evitar a catástrofe da mentira e do "faz de conta" em que as sociedades contemporãneas, quiçá inconscientemente, se têem afundado.

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