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terça-feira, 9 de julho de 2013

Um outro “Ensaio sobre a cegueira”… ou os hábitos de outros tempos.

Pelo menos desde anos trinta, as pessoas da vila tinham por hábito reunir-se ao serão, umas vezes em casa de uma vizinha, outras vezes em casa de outra; e à luz do petróleo, as mulheres faziam as suas costuras, os seus bordados ou seus tricots. Este hábito prolongou-se até aos finais dos anos cinquenta: faziam-se os enxovais e preparavam-se
as roupas de vestir. É bom recordar que desde as ceroulas, camisas de homem, pijamas, saias ou vestidos tudo era confeccionado à mão, apenas havia a máquina de costura para ajudar na confecção. Diz-se que “as conversas são como as cerejas”, e eu digo o mesmo quanto às histórias, começamos por uma e vamo-nos lembrando de outras.

Ao falar de confecção, lembrei-me de uma senhora do Sobral que estava a acabar um pijama da filha para estrear nessa noite, mas a criança estava com sono e pediu à mãe que se despachasse que queria dormir. A senhora considerou o trabalho quase acabado quando faltava ainda casear o pijama, mas cada “casa” levava pelo menos dez minutos a fazer e o pijama teria cinco ou seis botões … Enquanto abria a primeira casa a mãe disse para a filha ir se despindo enquanto ela caseava o pijama. Quando soube da história, fiquei sem perceber se a menina levava muito tempo a despir-se ou se a mãe era super-rápida a casear. Sei é que a menina dormiu nessa noite com o pijama novo.
Mas vou contar-lhes o que trouxe hoje para contar…Os homens não ficavam em casa… Uns juntavam-se nas tabernas: só mais tarde apareceu um café no Sobral, acho que no final da década de 40. Outros nas barbearias: lembro-me de estarem abertas ao serão e os clientes esperarem sentados a sua vez, para apararem a barba ou cortarem o cabelo, e aí se iam trocando conversas, às vezes sobre política e outras sobre as histórias da terra. Nas farmácias, havia duas, juntavam-se os mais letrados, os intelectuais que discutiam assuntos mais elevados, aí se redigiam discursos e cartas. Mas havia os que gostavam de jogar uma partida de cartas e, sem ter lugar adequado para o fazer, por não gostarem de frequentar a taberna, faziam-no nalguns estabelecimentos comerciais que estavam encerrados à noite.
Ora uma noite o Senhor Calhorda, um dos convidados para a “jogatana” e um habitual frequentador da Casa das Solas, local onde muitas vezes se jogava, não teve parceiro para o jogo. Ficou só a observar, mas o sono venceu-o e logo entrou no mundo dos sonhos; os companheiros, marotos, sempre dispostos a pregar uma partida, combinaram, enquanto ele ressonava, fazer-lhe algo para o assustar e se o pensaram melhor o fizeram.

Apagaram o candeeiro a petróleo e fizeram muito barulho para que o outro acordasse, e continuaram jogando, ou melhor fingido que jogavam. ”Estás parvo porque deitaste essa carta?” “E tu não tinhas que deitar essa fora, se tinhas a sota porque não aproveitaste e ganhávamos o jogo?”, e por aí fora, iam dizendo impropérios e ao mesmo tempo iam batendo com as mãos na mesa como se estivessem mesmo a atirar as cartas. O pobre do Sr. Calhorda acordou, olhou em redor, viu tudo escuro como breu … e ouvia que eles lá continuavam a jogar…
O que me está a acontecer pensou ele, e gritou: “Meus amigos parem de jogar, porque está acontecer uma grande desgraça. Eu estou completamente cego, não vejo sequer a luz do candeeiro”.Os companheiros ainda fingiram que riscavam os fósforos, mas ele, coitado, continuava sem ver nada. Foram durante algum tempo alimentando a brincadeira, fazendo-o acreditar nas suas patranhas, mas ao escutarem palavras tão tristes e ansiosas do amigo, acabaram por acender o candeeiro e livrá-lo daquela angústia.

Segundo me contaram, o Sr. Calhorda nunca mais fez parte daquela tertúlia e zangou-se a sério com todos os intervenientes na brincadeira. 
Maria Alexandrina

2 comentários:

  1. Amiga Alexandrina
    Segundo me foi contado, antigamente aos serões contavam-se muitas histórias passadas com as pessoas, umas verídicas outras nem tanto, mas era a hora de "pôr a escrita em dia" numa confraternização saudável, muitas vezes à volta da lareira.
    Estas passagens que nos conta são muito engraçadas.
    Agora, nem sempre as brincadeiras são bem aceites. Há que ter uma certa sensibilidade e conhecimento da pessoa com quem se pretende brincar, pois por vezes por causa de uma inocente brincadeira, perdem-se amizades que poderiam ter sido para a vida inteira.
    É que para aceitar as brincadeiras, em primeiro lugar há que ser brincalhão, e depois, ter um sentido de humor de forma a não melindrar ninguém.
    Todos nós temos os nossos dias bons e maus, e as brincadeiras em momentos inoportunos, podem dar mau resultado.
    Gostei desta sua história.
    Beijinhos da amiga
    Lourdes.

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  2. No outro, e verdadeiramente o único, “Ensaio sobre a cegueira”, José Saramago escreveu “o medo cega, o medo nos cegou, o medo fará com que continuemos cegos”. O senhor Calhorda da história da Alexandrina deu-lhe razão “antes do tempo”: o medo de estar cego levou-o ao pânico, o medo levou-o a não compreender os seus amigos, não aceitar a brincadeira deles, a não seguir a máxima de Saramago que aconselha que “se podes olhar vê; se podes ver, repara”.

    Mas este texto não me trouxe à memória só aquela obra maior de Saramago. Fez-me lembrar também os serões de trabalho da minha infância, não em farmácias ou em barbearias, que isso é novidade, mas em casa, por exemplo caseando. Sim, como me lembro de ouvir falar da dificuldade e do tempo que se perdia a casear, do verdadeiro segredo da arte de casear, das técnicas de casear. Há 50 anos, talvez, que esta palavra não aparecia na minha mente…

    Auzendo

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