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terça-feira, 30 de julho de 2013

Mestre remendão

O apontamento da Alexandrina fez-me lembrar outras profissões em vias de extinção ou mesmo já extintas.
Não conheço suficientemente o Sobral quer em tempo quer suas gentes que me permitam sinalizar aqui essas outras profissões. Contudo, não me é difícil recuar no tempo e caminhar
Homenagem ao Sapateiro S.João da Madeira
em memória por outras paragens. Estou convencido que o que existia nessas também por cá tinha representação.
O meu avô tinha uma sapataria e um comércio de tudo quanto era matéria prima relacionada com sapatos. Lembro-me de, ao fundo da loja, num compartimento que servia de armazém, permanecer amontoada uma pilha de placas de cabedal para solas (ainda identifico o cheiro), do outro lado as placas de borracha brancas, vermelhas, pretas. Em prateleiras bem distintas, os cabedais finos, macios e multicoloridos, mais ou menos lustrosos (vernizes), as carneiras cremes, dispostos pelas cores e qualidades.
Na loja, pregos, colas, fios, ceras, formas de madeira de diversos números, um não sei quantos produtos ligados à arte e vitrines de exposição de sapatos acabados. Tudo o que permanecia em exposição ou era por encomenda e entrega breve ou nunca levantado, muitas vezes, por falta de dinheiro. Não se vendia sapatos de outras proveniências.
Aos domingos, depois da missa, era casa cheia. Vinham os mestres sapateiros das redondezas comprar o material que lhes fazia falta para o seu dia a dia, vinha o povo encomendar uns sapatos ou botas.
Estou a ver o meu avô colocar no chão uma folha de papel e, com um lápis, contornar o pé do cliente ao que se seguia algumas medidas. Recordo-me das exigências dos clientes, botas de sola de borracha branca com salto assim...rebordo com fita colorida azul ou vermelha... sapatos com desenhos ou lisos... pretos ou castanhos, de verniz ou não, solas de borracha ou couro... Ah! E havia os que traziam recortes de pneu que dariam para uma resistentes solas de botas de trabalho...
Discutia-se o preço, às vezes regateava-se, acertava-se prazo de entrega...
Estou a ver o meu avô, no dia imediato, colocar uma pele em cima de um balcão largo e com os moldes em cima, faca afiada na mão esquerda, contorná-los com arte. Depois sentava-se à máquina e, pouco a pouco, as peças soltas que constituíam o puzzle, cosidas uma após outra, sem esquecer o forro e por vezes os “picotados” artisticamente elaborados nas gáspeas tomavam forma de sapato. O som do pedal sobreponha-se sempre a um trautear de uma música que nunca consegui identificar. Era a música do momento!
Feito todo este trabalho de armação, as peças transitavam para a oficina. Lá, cinco homens em redor de uma mesa rectangular muito baixa, sentados em bancos tripé, quatro eram mestres, um aprendiz. Na mesa, ferramentas várias, turqueses de puxar, sovelas de couro e borracha, ferros de brunir, martelos, facas afiadíssimas, caco de vidro, grosa de peixe lixa, caixa com pregos dezenas de vezes usados, protectores (pequenas placas que se pregava nas extremidades da sola para evitar o desgaste), muitos outros pequenos instrumentos e, no centro, um pequeno alguidar com uma
Foto do Museu Etnográfico de Arganil
papa de farinha que era usada como cola, confeccionada na cozinha lá de casa. Não parecia haver ordem naquele tampo, mas a verdade é que cada coisa estava no seu lugar... No chão, um balde com água para colocar as solas de molho, uma pedra para as bater com um martelo especial. Aí fabricavam-se sapatos novos e arranjam-se os estragados...
Gostava de me sentar no degrau da oficina a observar os homens a trabalhar com mestria e a vê-los discutir futebol... Ainda hoje, se vejo alguém a gesticular muito, lembro-me da expressão “parecem os sapateiros do avô: quando falam não trabalham”. Aqui tomei conhecimento de uma terminologia (não sei se específica e universal), ligada ao sapato: viro, gáspea, alma, contraforte...
Não me era permitido permanecer na oficina de “borla”. Ali não podia haver espectadores! Para lá permanecer, tinha que justificar de uma forma útil a minha presença. Endireitar uns pregos numa muito gasta pedra achatada de basalto, passar cera nos fios entrançados que iam coser as solas. Se não fosse assim, um primo que trabalhava com o meu avô na loja, mandava-me passear. Recordo com alegria as centenas de marteladas nos dedos, o odor do quente do pedaço de cera na mão ao friccionar os fios.
Nas paredes da oficina, dependuradas e à espera de vez para calçar os sapatos em estreia, dezenas de formas em uso já com picadas de centenas de pregos, alguns fios já prontos, os habituais calendários dos clubes de futebol e ... outros... (não exagerados, porque o meu avô não permitia).
Hoje há ortopedistas e sapatos de correcção. Naquela altura, recordo que se algum neto, ao caminhar, “metesse” os pés para dentro ou apresentasse mais desgaste num lado dos saltos, o meu avô com olho “clínico” mandava colocar uma “cunha” ou pequena correcção. A sabedoria do empirismo!
Neste espaço gostava que houvesse evocações de outras actividades e, se não agentes directos, de familiares que os celebrassem com orgulho!
Tanoeiro, funileiro, apanhadora de malhas , amolador, sei lá, tantas...
Afonso Faria

4 comentários:

  1. Que gratas recordações me trouxe este texto do professor Afonso, fez-me lembrar dos serões, nas longas noites de inverno , em que o meu padrinho consertava o calçado de toda a família, eram capas, eram meias solas e até umas tombas…e eu ajudava-o segurando o ferro de brumir no vidro do candeeiro a petróleo, para aquecer ou escolhendo os pregos dos mais diversos tamanhos, o que eu gostava! Sempre tive a “mania” que sabia fazer tudo por isso tinha a certeza de saber “meter “ meias solas.
    Os sapateiros tinham por hábito discutir todos os assuntos, desde o futebol à política, e a oficina que tão bem descreve é tal qual a que eu conheci, ainda tenho no meu sótão um banco de tripé e formas…o que resta de uma vida de trabalho.
    Também o meu pequenino pé de criança, foi muitas vezes medido numa folha de papel, para um sapatinho novo, e a minha madrinha costumava dizer: que o calçado era forte e feio.
    Maria Alexandrina

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  2. Mais uma profissão que tem tendência a acabar. Também eu tive um tio, irmão de meu pai, que era sapateiro. Era uma arte que lhe dava imenso prazer e tinha muita clientela pois todo o trabalho que saía das suas mãos tinha a maior perfeição.
    Não posso aprofundar muito o trabalho pois a minha vida de "nómada" nunca me deixou aproximar destas artes em vias de extinsão. Apenas me lembro do que ouvia dizer. Mas sei que a pouco e pouco este trabalho tão necessário vai tendo os seus dias contados. Hoje, se por um lado as máquinas modernas facilitam muito a rapidez do trabalho, por outro a resistência do calçado nem sempre é a melhor. Muitas vezes nem compensa mandar arranjar.
    Outros tempos, outros costumes, a isso obriga a evolução. Mas será que é sempre para melhor?...
    Obrigada Professor Afonso pelo seu depoimento ao relembrar uma profissão digna mas que vai desaparecendo ...
    Um abraço
    Lourdes.

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  3. Um texto simples de pessoas simples que executavam profissões simples. Mas será que estamos a falar de artes simples?! Não, simples é colocar uma máquina a replicar modelos sem identidade própria, enquanto que o que foi relatado foi a maravilha de só o homem poder criar e em cada obra ( sejam elas sapatos ou lindas músicas ou pinturas )colocar a marca da sua personalidade e criatividade personalizada. Para mais, este texto remexeu com a minha permanente saudade do avô com quem fui criado que não sendo sapateiro, era capaz de "tocar muitos instrumentos", expressão que neste caso tem dois sentidos, o real pois desde a "gaita de beiços", passando pela viola e pela sanfona era um prazer ouvi-lo e aproveitar destes momentos mais descontraídos, bem contrastan-tes com a sua habitual postura "patriarcal"; o segundo sentido é que tendo como profissão inicial a de padeiro, meu querido avô era um exímio sapateiro familiar resolvendo todos os problemas que iam, de vez em quando,atormentando os sapatos da família. E como isso era importante na economia familiar!!. Excelente cozinheiro, teve mais tarde duas "casas de pasto", designação dada na época a pequenos cafés modestos que serviam refeições, bem como ainda lhe conheci a actividade rural numa quinta onde tantos e tão bons momentos vivi (foi a única vez na minha vida que pude usufruir de uma piscina pessoal: o tanque imenso para rega, mas que para mim era uma luxuosa piscina sempre ao meu dispor). Enfim este texto trouxe-me à memória uma infância inesquecível, pessoas que relembrei com saudade por fazerem parte doas colaboradores que com meu avô fizeram parte integrante da minha vivência e esse MEU GRANDE HOMEM que é e sempre será uma companhia viva e insubstituível do meu "dia-a-dia".
    Peço desculpa por este texto tão "egoísta", mas este espaço de amigos é também um pouco uma forma de partilhar sentimentos muitas vezes pessoais, mas que sentimos necessidade de "pôr para fora".
    Bem hajam

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  4. Olá Sr. Afonso,
    Gostei de ler este seu apontamento relacionado com a profissão do seu avô. O meu avô materno não era sapateiro mas, como era um homem dos "sete ofícios" era ele que consertava os sapatos dos seus cinco filhos. Lembro-me de ouvir a minha querida Mãe contar uma ou outra história relacionada com os trabalhos "artísticos" que ele fazia nos sapatos dos filhos, se calhar se fosse hoje ninguém os calçava, mas enfím!!!outros tempos. É de facto uma profissão em vias de extinção, Não conheço nenhum jovem que seja ou queira ser sapateiro. No entanto os que existem continuam a ter bastante trabalho e a fazer muita falta. Conheço em Torres Vedras um Sr. que na sua profissão de sapateiro não tem "mãos a medir", quando lá vou só vejo sacos com sapatos por tudo quanto é sitio. Um dia o meu filho disse-me Mãe, tenho aqui umas botas que uso ao serviço dos Bombeiros e se calhar tenho que as deitar fora uma vez que estão bastante danificadas e não deve haver quem as arranje. Como são caras tive pena de deitar fora e disse-lhe,: deixa ficar que quando eu for a Torres levo-as ao tal sapateiro e logo se vê, o que é certo é que foram concertadas, e o tempo que elas ainda duraram!
    Parabêns Sr. Afonso por reter na sua memória todas essas recordações. Recordar é viver! diz a sabedoria popular e com razão.
    Um abraço
    Rosa Santos

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