VISITANTES

sábado, 27 de abril de 2013

Ainda 25 de Abril


Aquando o 25 de Abril de 1974 encontrava-me ainda na Guiné, dois anos de missão, como se dizia.
As notícias eram difusas, algumas hierarquias esforçavam-se por filtrá-las, era então Governador da província, Bettencourt Rodrigues.
Recordo-me que de imediato pensei não mais voltar a se repetir o que a minha família vivera!
Era o mais novo de quatro irmãos, três em simultâneo na chamada defesa da Pátria, no Ultramar. Eu na Guiné, outro em Angola e outro em Moçambique.
A geração actual nem sequer concebe a realidade do período da guerra colonial, bem como não concebe  a inibição do voto às mulheres, o não se poder expressar a opinião livremente, a existência de escolas para rapazes e outras para raparigas, as perseguições dos que autonomamente pensavam, ousavam pensar. Não concebe que até na música havia proscritos. Não concebe porque nós, aqueles que sentimos na pele e vivenciámos, procurámos atenuar muitas das realidades, das dificuldades, talvez com o conceito errado de atenuante do feio, do horrível.
Em pleno 2013, tantos anos após 25 de Abril, custa-me ver tantas mentes cristalizadas de preconceitos. Parou-se no tempo, a apologia da velha escola mantém-se estupidamente. De uma forma piedosa...constato, acho que é inglória a contraposição.
Como era a vida dos lavradores antes do 25 de Abril, que ferramentas para além das braçais? Que acesso à educação, à formação superior dos filhos dos que não formados ou não ricos? Que acesso à saúde, direito à reforma? E a guerra, lembram-se? Oh esquecimento, tantas e tantas outras aberrações...
A 16 de Maio regressei a Lisboa. 
No corpo e na mente algumas cicatrizes, mercê de dolorosos confrontos físicos e psicológicos.
Lisboa pareceu-me mais luminosa, o sorriso de esperança vivido era contagiante, do motorista de táxi, ao empregado de café, recepcionista da pensão, ao homem da rua, renascera o Povo.
No ar, experimentava-se ser feliz, válvula de escape, esculpia-se uma visão de futuro...
O avião pousara em Figo Maduro, aeroporto militar, poucos minutos após a visualização da Lisboa. Levei muito mais a pousar, horas, dias...
Entre a descrença e o fascínio, ousei percorrer as ruas de Lisboa, atordoado, bebendo o momento, procurando entender os  que me tinham sido coercivamente sonegados...
Depois... ah depois, o poder corrompe, destrói, aqui e além mar.
Se o ideal mobiliza, inova, o poder estagna, habitua, corrompe!
Ainda me encontro às portas que Abril abriu e que só de longe vi. Luto, pratico, insurjo-me, dou testemunho. Tenham paciência por não me adaptar, resignar!
Tenham lá paciência por dizer que não !

Afonso Faria



8 comentários:

  1. Professor Afonso
    Obrigada pelo seu testemunho "vivido e sofrido" numa época transitória do terror para a liberdade.
    Já aqui tenho afirmado que, apesar de não ter tido a consciência de ter sofrido directamente na pele as "agruras" de um passado que ninguém gosta de recordar, compreendo perfeitamente tudo o que diz e sente.
    Imagino a ansiedade e sofrimento dos seus pais, com três filhos ao mesmo tempo a "defenderem a Pátria", sem saber sequer contra quem estariam a lutar ...
    É que também eu sofri na pele a ausência prolongada e dolorosa de alguns entes queridos, um dos quais, um jovem de 20 anos, se suicidou por não aguentar a pressão. E o meu pai, duas vezes na Guiné, a ponto de não aguentar mais e ser recambiado num avisão militar, também aterrado no aeroporto de Figo Maduro, directamente para o Hospital Militar, onde alguns meses depois veio a falecer.
    Por isso posso dizer-lhe que estou solidária consigo.
    Festejei com alegria o 25 de Abril, embora na época não entendesse muito bem o que se estava a passar. Sabia que era algo de bom para o país, para as pessoas, e Festejei por solidariedade mesmo não percebendo o total significado de toda a revolução.
    Não tivesse ele acontecido, não sei se a esta hora os meus queridos filhos ainda cá estariam ou se, por um cruel destino, não teriam regressado...
    Tal como diz, o poder, e eu acrescento, a ganância, corrompem o homem. E é triste, muito triste, que alguns oportunistas (e outros parasitas da sociedade) se tenham aproveitado da liberdade e da tão apregoada Democracia, e em seu nome tenham já praticado tanta coisa indesejável ... e mais não digo, não quero.
    Mas quanto mais não seja, só pelas vidas que se pouparam e não foram ceifadas numa guerra estúpida, já valeu a pena... aquela Madrugada de Abril.
    Felicito-o por ter regressado, apesar dos traumas, e bem assim os seus irmãos. Todos vivos, felizmente.
    Um abraço
    Lourdes.

    ResponderEliminar
  2. Sr. Afonso acho muito bem que diga "não", e a liberdade de expressão foi uma das portas que Abril abriu... Só quem não viveu o medo de falar, quem não viveu os horrores da guerra, quem não viveu sem apoio social, quem não viveu com fome e sem ter comida para dar aos filhos,quem não teve acesso à cultura, só quem não foi perseguido,oprimido e torturado, é que pode ignorar... Mas nós "vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar".
    Sempre que for altura de dizer "não" temos que o fazer e quando nos sentirmos prejudicados temos que dizer:"Basta"!
    Maria Alexandrina


    ResponderEliminar
  3. Mesmo os que estavam com os pés em terra tiveram dificuldades na “aterragem”, Professor Afonso. Era Portugal atordoado.
    Tive o privilégio de ser criada no seio de uma família que nunca ignorou o mundo em que vivia, sempre informados e lutadores; bem cedo tomei consciência de que tudo nos era cerceado.
    Mais tarde, ao entrar no mundo de trabalho, senti na pele a discriminação de ser mulher num mundo de homens. Ui! E que homens aqueles! Eram a fina flor …
    É, para mim, inconcebível viver “assistindo ao passar do comboio assobiando para o lado”, fingindo que não sei, que não percebo, que não é comigo.
    Depois… ah depois. Aburguesámo-nos, tomámos tudo por adquirido… e, porque nos dava jeito, fomos acreditando no Pai Natal, deixando que se instalassem no poder: os oportunistas, os corruptos, os patos bravos, os políticos de aviário…
    Agora… ah agora!
    Agora? Mais participação cívica… ainda se mantêm abertas as portas que Abril abriu.

    ResponderEliminar
  4. Boa noite Sr. Afonso,
    Tambem o Sr. foi uma das vitimas daquela guerra do Ultrmar, que ceifou a vida a tantos jovens e deixou tantas famílias destroçadas.Imagino, se é que é possível imaginar a dor,a saudade, a angústia que seus Pais sentiram, durante aqueles intermináveis dois anos, em que os seus três queridos filhos se encontravam em combate.Ninguem merecia passar por tanto sofrimento. Como disse anteriormente noutro comentário sobre o mesmo tema, tambem eu passei por essa fase. A dor da separação, a angústia e o medo de tudo o que podesse acontecer era de tal ordem, que nos dilacerava o coração. Muito embora o meu marido, na época namorado,não andasse em combate, visto se encontrar na base aérea, mesmo assim, o perigo caminhava lado a lado com todos os militares, independentemente da posição que ocupavam. Graças àqueles CORAJOSOS e DESTEMIDOS MILITARES,surgiu o 25 de ABRIl,pondo assim termo a esta e a tantas outras situações que oprimiam o nosso povo. Passados todos estes anos,ainda hoje muitas famílias, continuam a sofrer na pele, os efeitos nefastos daquele periodo tão negro da nossa história, ao que os "entendidos" chamam de "stress de guerra".
    Agora a guerra é outra e sem fim á vista.
    Hoje e sempre 25 de Abril
    Um abraço
    Rosa Santos

    ResponderEliminar
  5. Tem toda a razão, Afonso, quando diz que as gerações que cresceram após o 25 de Abril nem podem conceber o que então era viver, com as perseguições de toda a ordem, físicas, psicológicas, emocionais sobre aqueles que “autonomamente pensavam, ousavam pensar”. E o medo, acima de tudo o medo, o medo que paralisava, amordaçava, quando “até na música havia proscritos”, o medo que impedia até de, numa roda de amigos, se “expressar uma opinião livremente”: baixava-se a voz, olhava-se para o lado, escrutinavam-se os amigos, não fosse um deles ser informador…

    Mas também não podem, nem querem, concebê-lo aqueles que viviam bem instalados, irmanados com o Poder e dele dependentes, de uma forma ou de outra. Daí ( e felicito-o pelas suas sábias e desabridas palavras) “as mentes cristalizadas de preconceitos”, “a apologia da velha escola a manter-se estupidamente”. Estes convivem hipocritamente com o “25 de Abril”, outro remédio não têm, servem-se das liberdades que lhes são oferecidas, e que tanto desprezam, para denegrir a própria Democracia conquistada, para vomitar baboseiras a esmo…como se a política continuasse a ser, hoje, coisa de iluminados, de sobredotados, de uma elite abusivamente no poder, e não uma nossa arma de uso diário.

    Diz bem a Alexandrina que “só quem não viveu com fome (…) quem não teve acesso à cultura, só quem não foi perseguido (…) é que pode ignorar”. Estou com a Rosa Santos quando lembra as “tantas outras situações que oprimiam o nosso povo”, quando denuncia “os efeitos nefastos daquele período tao negro da nossa história”. Sendo eu homem, não posso também deixar de confirmar o grito da Inês ao acusar “a discriminação de ser mulher num mundo de homens”. No mundo do trabalho e não só: na Escola, na Igreja, na Família, tudo alicerçado numa política pensada para reprimir todos os anseios de igualdade e respeito. Ao respeito, sobrepunha-se o medo, a força bruta da “autoridade”, decidida sem qualquer intervenção das pessoas.

    Estamos hoje mal? Estamos sim, muito mal, hoje. Mas tudo por nossa própria e consciente decisão, ao votarmos ou ao não votarmos, ao decidirmos a política que o País segue. E disso não é “culpado” o 25 de Abril, somos nós e só nós. Ao menos por uma vez assumamos essa culpa. É cobardia, é hipocrisia, tentar encontrar outros “culpados”.

    Auzendo

    ResponderEliminar

  6. Professor Auzendo ao ler o seu comentário deu-me uma vontade enorme de voltar a este “cantinho” para dizer que gostei muito do que escreveu.
    Um relato real, uma verdade nua e crua…o “respeito” doutros tempos, que tanto ouço hoje apregoar, não passava de um medo que nos atormentava… até em casa certos assuntos eram falados à boca pequena, não fosse alguém passar na rua e ouvir. Os “bufos”, gente como nós do povo, que querendo parecerem importantes “lambiam as botas ao poder”, escutavam conversas das mesas dos cafés para as levar aos “políticos da terra”. Alguns eram conhecidos, outros não, e estes seriam os mais perigosos, porque não tinham um rosto visível. Isto passava-se por todo o País.

    Não vou repetir o que já foi dito no texto ou nos comentários, mas todos eles retratam a falta de liberdade que existia. Muitos homens e mulheres sofreram com a prisão, e alguns foram torturados até à morte no Tarrafal e noutros estabelecimentos prisionais, pela sua rebeldia e insatisfação.

    Portugal vive uma “crise” e a culpa não morre solteira, mas ainda nos podemos expressar e manifestar livremente, e isso chama-se DEMOCRACIA, não é uma palavra vã e tem muito valor para aqueles que nunca se resignam e que não querem ignorar.
    Por isso e sempre e por tudo o 25 de Abril, que foi uma revolução de cravos, libertou o povo português do Fascismo e da Guerra. Os capitães fizeram o possível, coube-nos continuar o trabalho começado e parece que o caminho não foi o mais certo…E quem tem culpa? Façam o seu exame de consciência: o “povo é quem mais ordena”.
    Maria Alexandrina

    ResponderEliminar
  7. Ao ler o texto sobre o 25 de Abril, fiquei desde logo confortado, por sentir companhia na alegria sempre renovada de não o esquecer e de o reafirmar como um dos marcos que assinalarão a minha passagem por esta vida terrena. É claro que também pertenço à geração dos que fizeram o serviço militar em tempo de guerra, mas também sou dos que tiveram a ventura de a ver terminar. Esta foi uma das conquistas que ninguém poderá reverter, e só por esta o saldo do 25 de Abril é muito positivo. Mas o que me levou a escrever, para além do texto em si que muito apreciei, foi a sensação de conforto por sentir que, apesar de muitos arautos do antigamente, há e haverá muitos que sabem que se continuarmos afirmando e dando testemunho da Fraternidade e Liberdade e a Democracia que a "Revolução dos Cravos" nos pôs nas mãos, futuro está aí e nós cá estaremos alutar por ela. Enfim, para além do mais, acresce que aqui encontrei irmanados no mesmo sentimento alguns com quem tenho a felicidade de conviver no dia a dia. Creiam, foi mesmo reconfortante e estimulante. Bem hajam

    ResponderEliminar
  8. São experiências que ninguém quer voltar a viver no entanto é preciso não deixar cair os ideais de Abril
    Adelaide

    ResponderEliminar