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sábado, 2 de fevereiro de 2013

Carta aberta a Irene do Céu Vieira Lisboa



Como prometido, segue aCarta aberta a Irene Lisboa, precedida de uma breve nota biográfica da autora da carta, escrita pela própria, Catarina Gaspar, a quem agradecemos a colaboração. O Blogue Sobral Sénior sente-se honrado com a publicação desta carta. Uma maravilha. Obrigados Catarina Gaspar.
Nasci na pacata e bonita vila alentejana de Galveias, em Agosto de 1965,aparada pelas mãos sábias e ternas de minha avó. Sou licenciada em solicitadoria. Vivo desde tenra idade na vila de Arruda dos Vinhos, onde trabalho.

Escrever é desde que me conheço a minha verdadeira e eterna paixão. Tenho dois livros de poesia publicados: Momentos e A Esmeralda O Rei. Sou detentora de alguns prémios literários. Divulgar, através da voz, a poesia dos grandes poetas portugueses é essencial para manter o meu equilíbrio físico e mental.




Querida Irene

Permite-me que te trate assim pelo enorme carinho, ternura e admiração que fui ganhando por ti ao longo dos anos.
Confesso que a afeição que hoje sinto em relação à tua pessoa e à tua escrita não foi de "amor à primeira vista". A paixão, que penso já ter nascido comigo, por tudo o que diz respeito à arte de escrever, cedo me levou ao teu encontro. Reconheço que não despertaste em mim aquele "friozinho no estômago" que sentia ao ler Florbela. Que durante muitos anos te achei uma escritora difícil, amarga, de palavras frias e pouco belas. Que pouco entendia da tua poesia e a achava construída de fragmentos quotidianos e banalidades que não acordavam em mim o prazer da leitura. Porém, as circunstâncias da vida, ou o destino, ou porque assim tinha de ser, levaram-me sempre a ti.
Talvez a idade, que também nos amadurece por dentro, nos traga a sabedoria, a sensibilidade e a serenidade necessárias para reconhecer as grandes obras e as grandes pessoas. Dizem- me que não eras fácil. Falam-me de ti distante, directa, desassossegada. De personalidade forte e sem medo de chamar as coisas pelos nomes. Que não te curvavas perante ninguém e defendias as tuas convicções até à exaustão. Admiro-te.


 A máquina de Irene Lisboa

No passado Domingo regressaste a casa. Não sei se esta é a tua casa! Prefiro o pensamento de "nós te recebermos em casa". Estive lá. Devia-te esse gesto. Era minha obrigação enquanto legatária do património literário que deixaste a todos nós. Foi com enorme orgulho que partilhei da intimidade do teu regresso. Mas os homens Irene, os homens desta tua terra, que acredito tenhas amado, continuam a vestir-se de "surrobeco" e a ter caras "vermelhuscas ou terrosas" e não é do isolamento, das serras ou da terra, do trabalho rural, da pouca instrução, da falta de oportunidades, do clima ou da miséria. Não é Irene. Nós já não estamos isolados. Eles construíram caminhos, estradas, rotundas, vê lá que até temos uma autoestrada (agora já não necessitavas de ir apanhar o comboio à linha do Oeste). Construíram escolas. Muitas escolas. Crianças e jovens que estudam e aqui aprendem vindos de muitos outros concelhos. Até o nosso clima, aquele vento frio de que tanto te queixavas, é procurado para os desportos radicais, coisa hoje muito em moda. Os homens Irene, é que continuam com a inteligência e a sensibilidade "vestida de surrobeco".
Por isso não entenderam o orgulho de, como disse e escreveu José Gomes Ferreira, teres sido " a maior escritora de todos os tempos portugueses". Não entenderam a vaidade, o encantamento de seres Arrudense. De seres nossa (bem, perdoa-me a incorrecção, eu afinal não sou Arrudense). Não entenderam e por isso estavam com pressa. Não leves a mal Irene. Na tua singela homenagem não havia toiros nem comida e parece que jogava o Benfica. Por isso não ficaram até ao fim.
Sabes Irene, os homens da tua terra já não são saloios. Daqueles saloios de que tu falas. Que conheciam e veneravam o respeito e a humildade. Que cuidavam e defendiam afincadamente o que era deles e se envolviam à pancada, se para tanto fosse necessário, em defesa das suas raízes e dos seus valores. Agora os homens são muito importantes. Têm coisas sempre inadiáveis para fazer, e depois tu também já estás morta e ... tens de compreender, falar de ti, ouvir as tuas palavras, entendê-las, não é para qualquer um. Não leves a mal Irene, eles passam como "a água dos rios costuma correr", mas a ti "hão-de ler-te até ao fim da língua portuguesa".
Eu gosto de te ter em casa. Afinal, como ficou dito, a tua casa "é a casa das letras".
Até sempre
Catarina Gaspar

14 comentários:

  1. A riqueza que é "ser amiga"de Irene Lisboa ,e é uma dupla riqueza.Deslumbra-me ler esta carta,é a continuação da vivência da Escritora! Obrigada pelos belos momentos Catarina Gaspar e continue que VALE MUITO A PENA!!!!

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  2. Doutora Catarina
    Começa a sua lindíssima carta pedindo desculpa a Irene Lisboa por a tratar por “querida”. Maior foi a minha ousadia ao tratá-la por “minha Irene”, num comentário ao texto do Sr. José Auzendo sobre a escritora.
    Mas quando se descreve uma região onde nascemos ou estamos inseridos da forma como ela o fez, e ela fê-lo como mais ninguém, esquecem-se as diferenças e ficamos envolvidas na história. É tudo tão “saloio”, tão nosso, que eu só sinto vontade de dizer que a “Irene é minha”.
    A sua forma de escrever, e agora refiro-me a si, Doutora, é fascinante, e a minha curiosidade de lê-la noutros contextos é enorme…mas de certeza nada poderá ser mais belo do que esta belíssima carta.
    Foi um prazer ler a sua missiva, e registo com grande satisfação a sua vontade de que não seja esquecida Irene do Céu Vieira Lisboa…
    Maria Alexandrina

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  3. Não conheço a autora desta Carta-Homenagem mas pelo que li da minha amiga Alexandrina, já vi que é uma senhora culta.
    Quero felicitá-la Doutora Catarina pela sua Carta, em jeito de Homenagem Póstuma, a uma MULHER cuja obra deveria ter sido realçada nos nossos meios culturais e escolares, mas que infelizmente, tal como tantos outros talentos que ficaram no anonimato, vão ficando esquecidos no tempo ...
    Bem-haja pelo seu gesto e tentativa de fazer justiça a quem deixou um legado literário de relevo mas a que, pelo menos até agora, não foi "ainda" dado grande valor. Espero que a justiça, embora tarde, não falhe.
    Lourdes Henriques.

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  4. Irene...Irene? Já sei, era da casa dos segredos. Não? Já sei, uma das tipas dos preço certo. Não? De Lisboa? Famosa? Já sei é aquela tipa que começou a tourear agora, mas pensava que era de Vila Franca. Ó pá a gente não podemos lembrar-de de tudo...

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    1. Meu querido anónimo,
      Para quê tantas hesitações?! Não me diga, que tal como a concorrente da casa dos segredos acredita que África é um país da América do Sul?
      Sugiro, que se dedique à festa brava e aos concursos da televisão. Puxe pela sua inteligência que bastante falta lhe faz. A "tipa" ainda pensava que era de Vila Franca, mas você é ainda pior que ela, uma vez que nem o seu nome sabe.
      Cumprimentos,
      Mariana

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    2. Bravo, Mariana, quem fala assim não é gago...Melhor, gaga.
      E escrevi gaga, porque o seu "querido anónimo" pode ser "a minha querida anónima". Mas não se preocupe, Mariana, com a possível falha na troca do género... Nisso, ele/ela tem razão: "a gente não podemos lembrar ...tudo".
      Auzendo

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  5. Permita-se-me que comece com um testemunho muito pessoal. Soube da existência de Catarina Gaspar quando, há dias, a ouvi dizer uns quantos poemas de Irene Lisboa na sessão pública de que falei no meu texto. E deliciou-me a vida que ela soube imprimir às ideias que a poetisa tinha querido exprimir.

    Ao tomar conhecimento desta "carta aberta" fiquei encantado com a sua beleza estética, com a sua prosa tão poética, que sei eu?

    Mas o que agora mais importa realçar é a verdade que Catarina
    Gaspar salienta na sua "carta": que são ainda muitos os homens e as mulheres de hoje que continuam com a inteligência e a sensibilidade vestida de suborreco. É triste que assim seja, mas é importante continuar a denunciá-lo. Obrigado Catarina.

    Auzendo

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  6. Bravo, Catarina!
    Obrigada pela escrita lúcida, pela coragem, pela partilha e, acima de tudo, pela lição…

    Infelizmente, a mentalidade dos homens de hoje só difere da dos homens do tempo da Irene na aparência. Hoje, muito ocupados, importantes e preocupados, sobretudo em dar nas vistas; bem encadernados nos seus fatos, encaixotados nos seus carros… olhando o seu próprio umbigo. Para quê perder tempo com uma morta que até dizia e escrevia coisas difíceis e incompreensivas para a sua “inteligência e sensibilidade vestida de sorrubeco”? (adorei, cara amiga, melhor é impossível!)

    Sendo nossa obrigação não deixar esquecer Irene Lisboa, apetece-me deixar aqui um dos versos dos seus “Poemas mental: nada, ou quase nada sentimental”, como ela os define.


    "Quem não sai de sua casa,
    não atravessa montes nem vales,
    não vê eiras
    nem mulheres de infusa,
    nem homens de mangual em riste, suados,
    quem vive como a aranha no seu redondel
    cria mil olhos para nada.
    Mil olhos!
    Implacáveis.
    E hoje diz: odeio.
    Ontem diria: amo.
    Mas odeia, odeia com indómitos ódios.
    E se se aplaca, como acha o tempo pobre!
    E a liberdade inútil,
    inútil e vã,
    riqueza de miseráveis."

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  7. Lamento que a minha ironia não tenha sido apreendida.
    O que queria destacar era a ausência de referências para além dos PSI 20, DOW JONES, NASDAQ ou NIKKEI.
    Indices culturais? Bons, nas áreas que citei!
    Em boa verdade, repare-se que até aqui na Arruda o nome do externato mudou de nome.
    E encontros...a casa do Benfica promove muitos!
    Anónimo, por força das circunstâncias, a Arruda é demasiado pequena, não é Kata?

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    1. Sabe, senhor/a anónimo/a que mesmo agora, lendo o seu lamento, me custou perceber a sua ironia?

      Permita-me que ajude outros que, como eu pouco perspicazes, tenham (tido) dificuldade em apreender essa ironia.

      Quis então dizer-nos, na sua resumida forma de escrever, que os arrudenses (parece que se referia só aos arrudenses, não sei bem...) só sabem de, só se interessam por, casas dos segredos, preços certos, touradas, futebóis, psivintes e doujones...E, assim, de Irene, escritora/poeta, nem podem saber quem seja, nem lhes interessa.

      Não sou arrudense, mas gostava que estivesse enganado/a. Sei que há por aí, como por aqui, muito serrobeco (ou surrobeco, nunca suborreco como escrevi), mas tanto não creio...

      Auzendo

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  8. D. Catarina Gaspar,

    Gostei de ler a sua carta a Irene Lisboa e o que diz dos homens de hoje. Gostei da frontalidade da denúncia, dizendo o que realmente tem de ser dito: que é mais "premente" ver um jogo de futebol do que estar a "perder" tempo com quem tinha uma forma de escrever não muito directa e, para mais, já cá não está.

    Essa é ainda hoje também a luta dos poetas, quando fazem por exemplo uma sessão de poesia: a maior parte das vezes aparece apenas meia dúzia de pessoas.

    Sem levar a mal, gostaria de a ver num grupo de poesia que criei, o Horizontes da Poesia. Encontrá-lo-á numa busca através do Google.

    As maiores saudações poéticas.


    Joaquim Sustelo

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  9. Obrigada e os meus parabens D, Catarina. Um texto brilhante.
    Adelaide

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  10. Só hoje consegui ver a vossa publicação que muito me sensibilizou. Agradeço a partilha e a divulgação da minha carta, bem como agradeço as vossas amáveis e generosas palavras. O que eu pretendia era só dar a conhecer a extraordinária escritora que foi Irene Lisboa e tão mal tratada tem sido. Aqueles que não amam e não defendem os seus ...
    Que bom foi saber do interesse e do gosto de outros por Irene. Que bom perceber que que não estou só na defesa deste "nosso" valioso património.
    Obrigado pela vossa sensibilidade.Posso prometer que continuarei na minha missão de apresentar e promover Irene Lisboa ainda que alguns não entendam. Se entenderem importante disponho-me a protagonizar um evento de poesia aí no Sobral sobre Irene.
    Um abraço de amizade.
    Catarina Gaspar

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    1. Boa tarde Catarina,
      Respondo-lhe na qualidade de "gestor" do Blogue como carinhosamente me chama o José Auzendo.
      Foi para nós um privilégio a sua participação.!
      Sobralsenior surgiu na esperança de valorizar o indivíduo, uma aposta arrojada quando se esquece permanentemente o SER em detrimento do TER.
      Gostaríamos de contar com a sua participação independentemente da paixão comum de temas abordados.
      Disponha deste espaço, faculte-nos horizontes, opções várias para que voluntariamente haja alternativas de escolha nos caminhos, goste-se (legitimamente) ou não.
      Afonso Faria

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