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terça-feira, 9 de outubro de 2012

“Alice, minha irmã Alice”



Era uma vez... Apetece-me começar esta história como começavam as histórias que eu lia em criança, nos meus estimados de livros (três, que li e reli) da colecção “Manecas”. Sim... Era uma vez uma menina que nasceu em 31 de Outubro de 1928, e a quem puseram o nome de Maria Alice. Bonita, esperta e ladina, foi crescendo no seio de uma família pobre, até que chegou a idade de ir para a escola, mas nem sequer passou pela cabeça dos pais mandá-la aprender a ler. A escola era longe e ela era muito nova para fazer aquele percurso a pé; além disso, havia os irmãos para cuidar, (que nasciam, em média, um de dois em dois anos). Houve alguém que se preocupou com isso: uma vizinha ilustre (não conheci, não lembro o nome, só sei que era “a Senhora Marquesa”) apreciava o dia a dia daquela menina e achava um desperdício deixá-la analfabeta, e sempre que a menina podia ia-lhe ensinando o valor das letras. Não foi preciso muito tempo, depressa aprendeu a juntá-las e de repente a menina sabia ler correctamente, devido a uma inteligência acima da média. Aos 8 anos de idade era ela quem distribuía o correio pela aldeia, depois de o ir buscar à sede de freguesia.
Cresceu, não muito, porque era de baixa estatura, nunca passou o metro e meio, mas tornou-se uma bonita rapariga. Foi “servir” nas casas dos senhores ricos, e aqui no Sobral encontrou um rapaz também bonito, de seu nome António Martinho, mas pobre como ela: casaram, foram viver para a Barqueira e aí abriram uma loja mista de taberna e mercearia. Ele era carpinteiro mecânico e assim iam vivendo, uma vida pobre mas um pouco mais desafogada. Para regalo do casal, nasceu uma menina e assim a casa ficou mais completa, havia um fruto do seu amor. Chamaram-lhe Ana Maria.
Quando a filha tinha nove meses, a Pide veio prender-lhe o marido e temos novamente a menina, que se tornou rapariga e se fez mulher e mãe, vitima da pouca sorte: teve que lutar sozinha para sobreviver com a filha, durante uns meses, enquanto o marido esteve preso. Na sua vida fez de tudo, em parte devido ao feitio irrequieto do marido, que andava sempre à procura de um novo trabalho ou negócio para melhorar a vida, o que nem sempre acontecia. Criou ovelhas, criou vacas, foi regatoa, tinha uma carroça puxada por uma mula, e partia nela de terra em terra a comprar ovos e criação, que depois mandava para Lisboa e para a Malveira. As horas na cama eram sempre poucas.
Sobral, Março de  1959
Assim trabalhando, ela e o marido foram a pouco e pouco construindo uma casa. Uma nova profissão surgiu na vida dela: a de leiteira. Comprava o leite na Cooperativa do Leite e, com as bilhas a brilhar que pareciam ouro, distribuía o leite de casa em casa; era habitual ver aquela fraca figura com duas ou três bilhas de mais de 20 litros, nas mãos ou nos braços. E quantas vezes subia a um segundo andar para vender dois decilitros e meio de leite!... Como sempre a vida não corria bem, e o marido teve de emigrar, coisa que ela nunca quis fazer. Veio então viver para o Sobral para ter o apoio dos padrinhos, que eram também os meus. E assim ganhei uma irmã.
A sua última profissão, na qual se manteve enquanto teve saúde, foi de cozinheira: trespassou um restaurantezito e, em pouco tempo, afreguesou-o de tal maneira que vinham pessoas da Amadora, de Lisboa, de Almada, dos mais variados sítios, ao domingo, para comer o cozido à portuguesa, a mão de vaca com grão, ou a dobrada com feijão branco. Era ao lado da igreja do Sobral, e ficou conhecido como a Casa da Tia Alice. Os clientes habituais eram amigos, os familiares que lá passassem tinham forçosamente que comer. Estava sempre pronta a ajudar todos os que precisassem de ajuda. Entretanto, o marido regressou do estrangeiro, à sua profissão de carpinteiro mecânico, comprou mesmo a serração de madeiras onde trabalhava, na Merceana.
Quem viveu essa época, lembra-se do exemplo de persistência, de trabalho, de dignidade que era esta mulher de tão pequena de estatura, mas uma MULHER de letras muito grandes. Quando a vida lhe parecia sorrir, com uma vivenda nova para viver, fruto do trabalho do casal, uma grave doença levou-a com pouco mais de 50 anos. Apesar da sua vivacidade, do seu sorriso franco para toda a gente, e da sua vontade de superar a doença, não conseguiu manter-se entre nós, deixando marido e filha sozinhos. E aqui acaba a história, de momentos felizes e de outros muito tristes, da minha querida irmã Maria Alice, que recordo todos os dias, com muita saudade.

Maria Alexandrina

8 comentários:

  1. OLÁ Alexandrina
    Gostei do texto que fez sobre a sua falecida irmã. A dona Alice já não está entre nós há muitos anos, Recordo-me dela como uma mulher decidida, e activa, lembro de a ver andar de porta, em porta com as bilhas do leite. Era uma mulher de estrutura pequena mas era uma grande mulher. Beijinhos da amiga
    Mariana Luís
    “A saudade é um lago transparente a reflectir sempre a imagem da pessoa ausente”

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  2. Saudosa Ti'Alice onde fui, tanta vez, aos "recados". Bem-hajas Maria Alexandrina pelas memórias que aqui tens feito desfilar. Joaquim Gonçalves

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  3. Amiga Alexandrina
    Esta é de facto uma história de vida não muito feliz. Basta dizer que a senhora partiu com pouco mais de 50 anos ...
    Depois de tantos altos e baixos na vida deveria ter tido um pouco mais de sorte... mas a vida nem sempre trata melhor os que mais merecem.
    Louvo essa sua tão grande Amizade por uma pessoa que o destino pôs no seu caminho, por gostar tanto dela como se de facto sua irmã de sangue fosse. Fez bem contar essa sua vivência com uma pessoa que merecia ser recordada.
    Obrigada uma vez mais pela partilha desta sua história real.
    Um beijinho da amiga
    Lourdes.

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  4. Muitas coisas novas se vão aprendendo neste blogue...Nunca tinha ouvido, creio que nem lido, a palavra "regatoa", que aliás o windows também desconhece... No dicionário vem que é o feminino de "regatão", que pode ser regateiro, mas também revendedor...a retalho. No caso desta "irmã", revendedora de porta em porta...

    E esta foi só uma das muitas profissões desta Mulher, que bem poderemos considerar uma mulher de armas e dos sete ofícios. Mas este será talvez o aspecto menor que ressalta do texto da D. Alexandrina. Avulta nele, a meu ver, uma luta inglória por melhorar as condições de vida, uma batalha permanente contra a instabilidade e a insegurança que uma sociedade "desorganizada" impunha à maioria dos cidadãos.

    Desorganização social à qual estamos a regressar a passos largos, à qual regressaremos a breve trecho se não soubermos evitá-lo...

    José Auzendo

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  5. É verdade Maria Alexandrina, cada pessoa nasce com um condão, a tua irmã nasceu com o dom do trabalho, da honradez, da bondade e da simpatia. Era uma mulher muito activa, muito trabalhadora, que a custo conseguiu melhorar a vida, mas de que pouco desfrutou infelizmente.

    Foram duas pessoas com iguais características que morreram no mesmo ano, uma a seguir à outra, e na mesma cama articulada: a tua irmã e o meu marido. Era uma cama articulada que andava de casa em casa, emprestada pela D. Mariana. Naquele tempo era impensável os pobres possuírem uma coisa dessas…

    Convivi muito com a tua irmã, quando o meu estabelecimento era ao lado do dela, a casa da “tia Alice”, na rua Heróis da Bélgica.

    Lisete

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  6. Parabéns pelo testemunho inspirador e atual. Como diria o poeta "Pedras no caminho? Guardo todas, um dia farei um castelo!"
    Beijinhos,
    MArina

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  7. Maria Emília,15 de Outubro de 2012

    Maria Alexandrina,

    É a primeira vez que escrevo neste blogue, porém não me foi possível ficar indiferente ao ler o teu artigo sobre a minha amiga Maria Alice.
    Primeiro, porque sempre a considerei uma mulher com um M muito grande, por todos os motivos que inumeras, mas também porque fazia o favor de ser minha amiga, considerava-a da minha família, eu cresci ao lado dela e tive hipótese de constatar muitos dos factos.
    Segundo, porque lamento, depois de tanta luta ter tido um final de vida tão triste, bem merecia melhor.
    Sabes que apenas hoje descobri que não eras irmã biológica dela? tal era a vossa união que não o deixavam transparecer, eu que privei bastante de perto convosco...

    Os meus parabéns por tudo o que tens escrito.

    Um abraço,
    MEmília Lima

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  8. Mila é verdade de que eu e a minha irmã Maria Alice tínhamos uma relação muito forte, de muito amor e por isso passados tantos anos sobre a sua morte, ainda todos os dias a recordo com muita saudade.
    Agradeço a todos as palavras amáveis e podem crer que a minha irmã além de linda era uma pessoa fascinante. Porém tenho que esclarecer que a Maria Alice era minha irmã biológica... por qualquer erro no texto alguns amigos pensaram que não tínhamos laços familiares. Pois, somos filhas da mesma mãe e do mesmo pai,embora com quase dezasseis anos de diferença. Dos nossos pais ela foi a primeira a nascer e eu a última.
    Maria Alexandrina

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