VISITANTES

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

José Vieira – Parte 1

Chamo-me José Vieira e nasci em 30 de Junho de 1918; fiz, portanto, 94 anos. Nasci em Mouguelas, e vim viver mesmo para a vila do Sobral aos sete anos de idade. Julgo ser, neste momento, a segunda pessoa mais velha do Sobral, a seguir ao meu cunhado, Frederico Tavares, uns meses mais velho que eu. Tenho falta de vista, vejo pouco, já não consigo ler nem escrever, mas ando, ouço e falo bem, tenho ainda boa memória de tudo o que vivi.
Comecei o ensino primário no Sobral, mas pouco depois fui para a escola de Almargem, pois na Vila deixou de haver professor. A pé, do Sobral para Almargem, chovesse ou fizesse sol. E pouco se aprendia, porque o professor gostava era de andar a cavalo na égua do Moreira e ensinar… nada. Acabei por desistir e, depois, fui tendo aulas em diversos sítios, até estudei com a regente mestra Xavier, em casa dela, sentado num banco: aprender também não se aprendia nada… E assim andei sete anos, aqui e ali a fazer que estudava, para concluir a terceira classe. Acabei a escola com 14 anos feitos.
Nos intervalos sem aulas, que eram maiores que os períodos de aulas, ia trabalhando, primeiro com o meu irmão a acartar água do chafariz ou das duas bombas da Vila para o depósito da casa de pasto que a minha mãe tinha. Todos os dias tínhamos que encher o depósito. Depois, aí a partir dos 10 anos, a ir a Torres ou ao comboio a Dois Portos, com uma mula, buscar peixe para vender no Mercado do Sobral. O meu pai amanhava uma propriedade muito grande, chamada Cardeiras, em Mouguelas, e eu também trabalhava na propriedade, inclusive a fazer o vinho que era trazido para o Sobral: lembro-me de passar horas a encher as dornas de uvas à mão, para depois serem pisadas…
Fui depois aprender o ofício de barbeiro, na barbearia do meu cunhado, a barbearia Serreira, na Praça do Sobral. E assim andei até ir para a tropa. Como eu detestava ser barbeiro, pensei que ia para a tropa para me livrar da profissão, mas até pareceu castigo porque na tropa também me puseram a barbeiro, no Regimento de Metralhadoras 1, em Lisboa, na Marquês da Fronteira, onde agora é o Palácio da Justiça. Estávamos em 1939. Estive na tropa 11 meses. Nasci meses depois da eleição de Sidónio Pais como Presidente da República e seis meses antes do seu assassínio, em 14 de Dezembro de 1918. Muitas revoltas aconteceram depois, incluindo a de 28 de Maio de 1926, e a tomada do poder por Salazar, mas nada disso teve influência directa no meu dia a dia; aparentemente, que eu me lembre, esses acontecimentos não eram falados no Sobral. Falávamos mais na bola.
Mas lembro-me muito bem das dificuldades em que vivemos durante as guerras, a começar na guerra civil de Espanha e depois com a 2ª Grande Guerra: as senhas de racionamento que tínhamos de ir buscar para comprar quase tudo, sabão, pão, arroz, açúcar, bacalhau... Para a carne não havia senhas, mas tinha que se ir para a bicha do talho por volta da meia-noite e, muitas vezes, às 9 da manhã vinha-se embora sem carne, porque ela acabava. E havia a candonga, tanta candonga…
Quando saí da tropa, o meu pai alugou uma loja na Praça e eu continuei aí a profissão de barbeiro: foi a minha profissão toda a vida, até me reformar. Nessa altura, havia três barbearias na Praça e outra mais à frente, na Rua Marquês de Pombal. Casei aos 21 anos de idade com a filha de um padeiro e pasteleiro e tive um filho, que já morreu há anos. Ainda explorámos um café, em frente aos Bombeiros de então, na Rua Miguel Bombarda, onde passámos a viver. A minha mulher morreu cedo, de cancro na cabeça. Era a mulher mais alegre da rua, sempre bem-disposta. O meu pai também morreu tinha eu 30 e poucos anos, atropelado por um graduado da Mocidade Portuguesa... Ainda tentou fugir, caçaram-no mas, como era quem era, da situação, no julgamento foi apenas condenado a pagar uma pequena indemnização. Estávamos na década de 50 do século XX. Não tive netos. Além meu cunhado, tenho dois sobrinhos vivos: é esta a minha família actual. Vivo num lar, no Sobral, desde há quatro anos.

José Vieira

8 comentários:

  1. Como o sr. José Vieira diz, ele não vê o suficiente para ler ou escrever. Mas tudo o que está escrito foi dito e ouvido por ele, em três sessões de trabalho. Fui o "secretário" que lhe gravou numa cassete o que ele contou, que dactilografou e lhe leu o texto.E corrigiu os erros que ele detectou na primeira e mesmo na segunda leitura...

    Foi um espanto ver uma pessoa de 94 anos falar e entender tão bem, ser tão exigente com as palavras. Podia dar uma dezena de exemplos, a D. Lisete é testemunha, vou citar só um caso: eu tinha escrito, no último §, "um café ao lado dos Bombeiros". Não, não era ao lado, era em frente.

    O sr. José Vieira é o Sobralense mais citado neste blogue ao longo dos últimos meses; eu não o conhecia, quis conhecê-lo, e achei que era imperioso trazê-lo aqui, inteiro. Agradeço a colaboração da D. Lisete, em casa de quem ocorreram os nossos encontros. Foi ela que lhe leu a primeira versão, enquanto eu anotava os erros...de audição da csssete.

    Agradeço também ao sr. José Vieira o tempo que nos dispensou. Está prometido que lhe lerei (leremos) tudo o que sair neste blogue sobre ele. E por isso quero dizer já, aqui, o quanto me sensibilizaram as palavras que ele usou para me agradecer o interesse que eu manifestei em trazê-lo até ... vós. Gostou de se saber falado.

    E eu maravilhei-me a fazer o que fiz.

    José Auzendo

    ResponderEliminar
  2. Afinal este senhor José Vieira, que não gostava nada de ser barbeiro, teve uma vida inteira a desempennhar um trabalho que detestava, segundo palavras suas. É pena que a vida tenha sido bastante dura e difícil, mas nada disso impediu que algum dia tivesse sido feliz e tido uma vida normal. Hoje, com a bonita idade de 94, ainda tem uma memória privilegiada para conseguir partilhar connosco passagens da sua vida.
    Que Deus lhe conserve a lucidez e que, apesar de estar no lar, ainda consiga dar umas voltinhas aqui pela vila, relembrando o seu passado. É que "recordar é viver", e com uma vida tão longa deve ter muita coisa boa também para recordar.
    Bem-haja por partilhar a sua história.
    Lourdes Henriques.

    ResponderEliminar
  3. Gostaria também de agradecer ao Professor Auzendo e à amiga Lisete a grande ajuda para que este senhor tivesse podido dar o seu contributo da sua longa experiência de vida. Sei que conheceu o meu sogro, o Ferreiro António Freixial que também teve uma oficina aqui no Sobral, bem assim o meu marido, o ex-acordeonista Renato, que ao saber do seu testemunho pediu-me que lhe enviasse um GRANDE ABRAÇO.

    ResponderEliminar

  4. Para mim foi um grande prazer ter estes dois amigos em minha casa, um (jornalista) Auzendo fazendo perguntas ao José Vieira que respondia com uma lucidez brilhante e com um sorriso, quando recordava certos momentos da sua vida, espicaçado por mim, quando lhe lembrava dos corações destroçados que ficaram pelo caminho. O Zé é um homem acarinhado e estimado por todas as pessoas que o conhecem.

    Estou a ler-lhe o texto sobre os bombeiros que saiu no Gente Gira… Resposta dele: gostava de ainda a assistir à festa dos 100 anos dos bombeiros que se realiza para o ano. Nota-se o amor que dedica àquela casa. Bem merecia ter uma rua com o seu nome. Para finalizar o José Vieira é um homem com H grande.

    Agora uma gracinha: quando eu for idosa quero ter a memória dele.

    Lisete

    ResponderEliminar
  5. Amigo e estimado Senhor José Vieira, conheço-o desde que me conheço, sempre o considerei e considero um homem respeitador, e por isso respeitado.
    Ao lê-lo vieram-me recordações à memória: por exemplo o dia  em que o seu pai teve o acidente que o vitimou, a consternação e a revolta dos Sobralenses. Da minha amiga Irene, sua querida esposa, que fazia às vezes um arroz doce para as costureiras do Artur Flor: quentinho sabia que nem "ginjas".
    Do Carlitos,o seu único filho, moço da minha idade. E, engraçado como nos conhecemos todos tão bem!

    A sua vida não foi só o que nos contou, espero pela segunda parte para ler mais coisas, e espero que não esqueça a propaganda política distribuída em segredo... Esse homem também se chamava e chama José Vieira.
    Maria Alexandrina

    ResponderEliminar
  6. Convivi ao longo de muitos anos nos BOMBEIROS com o amigo JOSÉ VIEIRA. Pessoa pela qual tenho grande admiração.Em 1995 convenci o Sr José a fazer o seu baptismo de voo, numa viagem aos Açores, na qual fui efectuar um trabalho, e ele me acompanhou, foi fantástico, como sempre
    Gitinha

    ResponderEliminar
  7. Concordo que as homenagens devem ser feitas quando as pessoas estão vivas. O sr. José Vieira bem merece. obrigado sr.Ausendo por se ter lembrado dele assim não ficará tão esquecido.
    Adelaide

    ResponderEliminar
  8. Registo com agrado os agradecimentos que me endereçaram. E aproveito para lançar um apelo às pessoas que mais de perto conviveram com o sr. José Vieira. Dentro de dias sairá a segunda e última parte da “biografia” que ele entendeu publicar. Como então se verá, ele manteve-se sempre num registo sóbrio, sem se desviar do que considerou fundamental, por muito que a D. Lisete, como ela escreveu, o fosse espicaçando…Com um sorriso, ele lá ia fugindo para o terreno que queria pisar. Se tiver “espaço” ainda contarei uma história reveladora…

    Ora para além das vezes que o sr. José Vieira foi citado neste blogue, eu sempre ouvi as pessoas contarem histórias interessantes e públicas por ele vividas. E, pelos vistos, há muitas outras que nem suspeito, como foi o caso da que a D. Alexandrina desvendou. Então o apelo é este: aproveitar a última parte da biografia para cada um/uma trazer aqui um episódio de que se lembre com o/do sr. José Vieira.

    Aí vai a história: a frase sobre a “boa disposição” da esposa foi dita pela D. Lisete, tendo ele confirmado com um “era sim senhor”. E eu, em minha casa, ao dactilografar, pus aquela frase como tendo sido dita por ele. Pois foi difícil que ele deixasse passar: que não, que a frase não era dele, que era melhor tirar. Ou que dissesse que era a “opinião de uma vizinha”… Mas o senhor confirmou que sim, está gravado, ouça…Pois sim…mas…No fim lá aceitou que ficasse, claramente resignado. Registo os agradecimentos, mas foi um prazer viver isto com um sobralense de 94 anos de idade…Quando eu for velho, D. Lisete, também queria ser assim…

    Vai outra história? Ele de facto foi bombeiro durante 47 anos. Mas, por qualquer razão, nos Bombeiros do Sobral só constam 44. Pois ele não admitiu “pôr-se a falar” nos 47 anos…Não é oficial…

    José Auzendo


    ResponderEliminar