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domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Enterro do Entrudo



Com a aproximação do Carnaval, vieram-me à lembrança os carnavais da minha infância e juventude. Nessa altura eu fazia parte de um grupo, que se mascarava todos os anos. Todas elas eram mais velhas do que eu, a Odete Lima, a Lisete, a Laurinda Rocha, entre outras que já não recordo; da minha idade só a Isabel Carteado. Íamos de casa em casa, comiam-se uns doces, e na Arcádia bebia-se um abafadinho… de que eu em miúda gostava tanto…

Mas o que realmente me levou a escrever hoje foi relembrar uma tradição, o Enterro do Entrudo… Os mais novos talvez não tenham ouvido falar, mas era uma brincadeira de fim do Carnaval e com episódios algo burlescos: com que satisfação eu os vivi…

Na quarta-feira de Cinzas era habitual enterrar o Entrudo, era paródia só feita por homens: numa padiola transportada por quatro homens, deitavam um grande boneco num caixão, e percorriam as ruas da vila. Alguém vestido de padre, com um bacio cheio de água na mão, ia com um piaçaba benzendo tudo e todos; um outro, vestido de preto, fazia o papel de viúva, lamuriando-se e gritando a morte do seu marido. E havia ainda as carpideiras, que faziam uma gritaria infernal, em louvor ao morto. No meu tempo de criança, algumas pessoas da vila faziam o acompanhamento. E de porta em porta eram lidos versos de ”escárnio e maldizer”, lembrando qualquer facto ou pecado cometido durante o ano.

Contava-me o Sr. Alfredo Marcelino que, em anos mais recuados, era na Praça Dr. Eugénio Dias que culminava o cortejo e no coreto eram “deitadas as pulhas”. “Deitar a pulha” era o lançar para o ar aquilo que não tiveram coragem de dizer cara a cara e, ali em público e em voz muito alta, criticavam actos menos aceitáveis. Nessa altura eram atiradas frases até ofensivas, falando da vida íntima de cada um. Mas era Carnaval e ninguém podia levar a mal…

Com a ditadura do Estado Novo, foi proibido o enterro do Entrudo, sendo a Guarda Nacional Republicana o elemento opressor. As pessoas antigas do Sobral não gostavam muito de acatar ordens, principalmente quando elas mexiam com tradições da Terra. Mesmo com a proibição, todos os anos, já a horas tardias, meia dúzia de pessoas, cumpriam a tradição e lá seguia o enterro, com as suas carpideiras e o “morto”, que já não era um boneco, mas uma pessoa de carne e osso. Esta era também uma forma de protesto contra a ditadura.

Ora uma noite de “cinzas”, quando o cortejo descia a que é hoje a Rua Correia Guedes, alguém avisou os foliões de que a Guarda vinha a caminho. Nessa altura a padiola já tinha rodinhas, e quando soou o alarme correu um para cada lado esquecendo-se do “morto”, e lá foi ele direitinho à Barqueira, em grande velocidade… A sorte foi alguns calhaus que encontrou pelo caminho e que fizeram tombar o carrinho e o” morto”… saiu vivo.

Já nos anos cinquenta, numa fatídica noite de cinzas, a Guarda Nacional Republicana apareceu, sem aviso prévio, e foram todos levados sob prisão; todos, minto, escapou à prisão o “morto”. Quando os guardas voltaram costas, o morto levantou-se do seu caixão e gritou: então o morto não vai preso?

Muitas cenas engraçadas se passavam e os versos já eram ditos sem a mal intenção doutros tempos, mas incomodavam-se os Senhores da cadeira do poder, tudo o que era diferente era subversivo. Acabou-se de vez com o Enterro do Entrudo nas ruas, mas lembro-me de ver, talvez em 1959 ou 1960, no baile de terça-feira de Carnaval, já de madrugada, alguém fazer recordar os enterros e, dentro do Salão dos Bombeiros, improvisaram-no e lembravam o que a pouco e pouco se ia esquecendo…

Está claro que esta não foi das piores coisas que a ditadura fez, mas proibir uma brincadeira, não fazia sentido… nem havia necessidade

Maria Alexandrina


5 comentários:

  1. Amiga Maria Alexandrina,

    Li atentamente este seu texto e não pude deixar de recordar, com emoção, este "enterro do entrudo" que só vi uma vez, em garoto, na minha terra (Alcantarilha-Gare/Algarve). Era mais ou menos igual ao que aqui descreve.

    Curiosos os episódios que relata e, pensando na descida que vai até à Barqueira, que sorte teve o "falecido" em não se ter aleijado mesmo!...

    Quanto ao Carnaval, refiro os 3 dias, deixo-lhe aqui um soneto meu:

    CARNAVAL DA VIDA


    Quando eu era criança mascarava
    Meu rosto e usava vestes de mulher;
    Fazia seios de trapos e adoptava
    Voz fraca pra ninguém me conhecer.


    Havia uma risada que eu ganhava;
    Bebidas, era a "fina" (*); e que prazer!
    Feliz, nas brincadeiras delirava
    E assim, de porta em porta, ia bater.


    Cresci. Não mais voltei a tal costume
    Embora com saudade venha a lume
    A imagem que ficou em mim retida;


    Contudo, há uma coisa que não via:
    Aquilo a que se chama hipocrisia
    É máscara em Carnaval... este da Vida.


    (*) “bebida fina” é a designação dada aos licores no Algarve


    Joaquim Sustelo

    Um beijinho para si.

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    1. Amigo Joaquim
      Quero dar-lhe os meus parabéns pelo seu soneto. Gostei muito, especialmente da parte final.
      No Carnaval as pessoas mascaram-se para fingir o que não são, mas muitas vezes, sem querer, brincam com as máscaras para iludir os outros, mas a máscara desmascara-as da sua máscara real, neste Carnaval da Vida.
      Beijinho da
      Lourdes

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  2. Amiga Alexandrina
    Gostei das diabruras de Carnaval que descreveu. Embora eu não tivesse vivido a experiência do Enterro do Entrudo, é-me muito familiar essa passagem pois a minha mãe contava-me muitas vezes as paródias da juventude dela e por sinal, com muitas semelhanças ao que descreveu.
    Tal como o amigo Joaquim Sustelo, também ela era Algarvia. E os Algarvios são "marafados" para a folia. Recordo com saudade muitas passagens de Carnavais que ela me contava, as quais me faziam imaginar festas com as quais eu sonhava mas que na minha vida real nunca aconteceram. Os meus Carnavais foram sempre muito "pobres" pois além de estar longe de Portugal e os costumes serem outros, quando voltei nunca tive grande liberdade (ou quase nenhuma) para me divertir como eu gostava. Depois de Casada e ser mãe de 4 filhos já crescidos, já me diverti bastante. Enfim, cada um recorda o seu passado, mas há sempre algo a recordar que nos faz sorrir e nos deixa saudades ...
    Beijinhos da amiga
    Lourdes

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  3. Nada como esperar pela 4ª Feira de Cinzas, e "deixar assentar a poeira", para comentar o Enterro do Entrudo que, a avaliar pela descrição da Alexandrina, tinha lugar, no Sobral, nesta mesma 4ª Feira de Cinzas...É tradição que não consta da minhas vivências juvenis, mas sei que é prática ainda realizada por esse Norte fora, creio que mais em Trás os Montes: estou a lembrar-me do Entrudo de Lazarim e Podence, espero que seja assim que se escreve...

    E a do deitar as pulhas, bem, esta é que é novidade total: pulhas havia por lá, dizia-se que bastantes, por cá creio que também os há, já topei com alguns, mas já não se deitam...Nem têm carpideiras; destas ainda ouvi falar, mas noutros enterros, mais a sério.

    Tudo isto para significar uma coisa só: que é de uma grande riqueza histórica, esta descrição da Alexandrina. E nem lhe falta o vivo-morto-vivo que disse aos esbirros da GNR que também tinha de ir preso, solidário com os seu companheiros de rebelião. Um digno "sucessor" do Gouveia, cobrador de impostos, ou do Ramirito que desafiou o Cardeal...de chapéu de toureiro, lembram-se?

    Por que não tentar reavivar estas tradições, como se faz um pouco por esse País (Mundo) fora?

    Auzendo

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  4. Mário Veríssimo Horta Lopes, acho que é este o nome, aí do Sobral.
    Gostava de o reencontrar.

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