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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

José Vieira - Parte 2


O actual Campo da Feira
A bola, jogar futebol foi sempre uma das minhas paixões. Foi a única coisa por que o meu pai me bateu, porque naquela época querer jogar futebol era quase um crime. Mas eu não desisti, sempre que podia lá estava no Campo da Feira a jogar. No Campo da Feira, uma vez por mês, ao Domingo, havia a feira do gado. Vendiam-se vacas e bois, cavalos, burros, cabras e ovelhas, borregos, além das barracas de comes e bebes. E à segunda-feira lá estávamos nós, com um carrinho de mão, umas pás e vassouras para deixar o campo pronto para os treinos e jogos. Comecei a jogar no Monte Agraço Futebol Clube, a extremo direito. O primeiro jogo que fiz tinha 14 anos e foi contra a Merceana. Mas participei em torneios em que entraram equipas de adeptos do Benfica, Sporting e Belenenses…Durante a tropa, joguei em diversos clubes de Lisboa: o Vitória de Lisboa, o Cascalheira e ainda cheguei a ir aos treinos no Belenenses…

Acabada a tropa, voltei ao Monte Agraço e, depois, joguei no Alcobaça Comércio e Indústria, que disputava o Campeonato Distrital de Leiria: recebia 100$00 por cada jogo, mais despesas de viagem e alimentação no dia do jogo…Como a barbearia tinha de estar aberta ao Domingo, pagava 50$00 a um barbeiro de Lisboa para ficar a trabalhar nela, enquanto eu ia para Alcobaça. Ainda joguei futebol com o sistema antigo: um guarda-redes, dois “backs” (defesas), três “halfs” (médios) e cinco avançados…

Além disso, fui bombeiro durante 44 anos, desde os 22 aos 67, na Associação dos Bombeiros do Sobral. Estes foram fundados em 1913, cinco anos antes de eu nascer. Vi chegar à corporação o primeiro carro de combate a incêndios com motor, um Ford. Os outros eram puxados à mão, com umas espias enroladas puxadas à mão. Éramos uma guarnição de 21 pessoas. Nessa altura quase não havia incêndios nas florestas, no mato; os fogos eram quase só nas casas, nas eiras, nos palheiros…Para combater os incêndios não tínhamos farda; a farda era para as festas, para as recepções oficiais, para os desfiles…

E fui músico, ainda da primeira Banda Filarmónica do Sobral, a da Câmara Municipal, fundada pelo Dr. Sena Paiva, Presidente da Câmara. Aprendi música com o meu cunhado, o Serreira da Barbearia, que também era músico. Andava a aprender a tocar saxofone soprano, mas um dia faltou o baterista quando tínhamos que ir tocar a Martim Afonso, e o meu cunhado propôs-me como baterista, no momento para desenrascar, mas depois fiquei… Fui músico durante vários anos.
Não participei muito nas Festas do Sobral porque tinha que trabalhar na barbearia, essa era a altura em que havia mais clientes. Mas às vezes era desafiado pelos amigos a ir tourear as vacas nas touradas, quer das Festas, quer das que os Bombeiros organizavam para angariar dinheiro: só vinha um toureiro de fora, para coadjuvar a tourada, e o resto tinham de ser os homens da terra a fazerem a faena para o público.

Pertenci também a um “Trinta e um”. Para quem não saiba, um “trinta e um” era um grupo de trinta e um homens que se uniam por um acordo de cavalheiros e se comprometiam a ajudar-se mutuamente em caso de doença ou outra calamidade. Por exemplo, se algum dos do grupo adoecia e não podia ganhar para sustentar a família, os outros trinta estavam obrigados a dar ao necessitado 1$00 por semana, enquanto durasse a doença. Se houvesse dois doentes…eram 2$00. Não sei explicar porque é que o número de “sócios” era de 31, mas era essa a prática. Que me lembre e tenha sabido, havia um outro “trinta e um” aqui no Sobral, mais velho que o nosso. A contribuição de cada um só era dada quando havia doença, não havendo doença não se contribuía, não se juntava. Havia uma escala, e um dos não doentes percorria todos os elementos do grupo, recolhia o dinheiro e entregava-o em casa do necessitado, enquanto a necessidade se verificasse. Claro que se verificava se a necessidade era mesmo real e não inventada… Este era, na altura, o único apoio que as pessoas tinham se estavam doentes…

Como são diferentes as coisas, hoje. Mas estas são algumas recordações do que têm sido os meus 94 anos de vida. Uma vida cheia de coisas boas e outras menos boas, mas uma vida cheia. Não sei como vai ser daqui em diante, nem quanto tempo ainda viverei. Ser bombeiro durante quase meio século marcou muito a minha vida. Daí que tenha, neste momento, um grande desejo: poder assistir às comemorações dos 100 anos dos Bombeiros do Sobral, no dia 7 de Julho de 2013.

José Vieira

8 comentários:

  1. Respondendo ao apelo feito pelo Professor Auzendo, venho falar do Sr. José Vieira


    Quando a liberdade era um palavra que para os portugueses só existia no dicionário....Quando os homens não podiam manifestar a sua tendência partidária, livremente... Quando as reuniões políticas tinham de ser clandestinas, em casas abandonadas ou em palheiros... Quando para se concorrer a um emprego de Estado, tinha que se preencher uma declaração, afirmando que não tínhamos ideias subversivas...Quando... quando... Todavia...”havia sempre alguém que resistia, havia sempre alguém a dizer... não”. Homens e mulheres corajosos, que não se rendiam à ditadura e lutavam para que a palavra liberdade fosse dita e solta ao vento, como um grito numa madrugada de Abril...



    No Sobral havia grupos que, pela calada da noite, faziam erguer a sua voz, não sonora, mas através de propaganda escrita a alertar a população; avisando-a de que tinham direitos como seres humanos a mais educação, melhores salários, oito horas de trabalho semanal, e muitos outros direitos, dos quais alguns só foram consagrados por ter havido uma certa madrugada de Abril...



    Constou-me que a maior parte dos Sobralenses activos eram jovens operários e, entre os descontentes, também lá estava o Senhor José Vieira, que viu concretizado um sonho, viu a sua luta compensada, naquela que foi a mais bela madrugada de Abril...



    Maria Alexandrina

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  2. Nos dois textos do Sr. José Vieira há (por agora?) dois erros da exclusiva responsabilidade do dactilógrafo, o agora signatário…Acima, no 4º §, o Presidente da Câmara chamava-se Sucena Paiva e não Sena Paiva. No primeiro texto, no relato da sua vida familiar, caiu a frase em que ele dizia que, uma vez viúvo da primeira mulher, voltou a casar com Maria Gertrudes, estando outra vez viúvo…

    As minhas desculpas ao Sr. José Vieira e aos leitores…

    José Auzendo

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  3. Caro senhor José Vieira
    Uma vez mais estou a comentar este seu texto rico de experiências de vida e prestação de serviços à comunidade. Dou-lhe os meus parabéns por conseguir transmitir-nos todas estas suas vivências com tamanha clareza. Nasceu 5 anos depois da formação da Corporação dos Bombeiros aqui no Sobral, e tendo já chegado a esta bonita idade, tenho Fé em Deus que Ele não lhe vai negar a concretização desse seu sonho, de comemorar os 100 anos dos Bombeiros, no dia 7 de Julho de 2013. Para uma pessoa como o senhor que fez parte dos Bombeiros durante quase meio século, MERECE que o Destino o Recompense com essa Oferta. E vai recompensar.
    Parabéns e obrigada por ter partilhado connosco uma vida tão preenchida.
    Lourdes Henriques.

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  4. "Trinta e um"...
    Já há algum tempo a Alice Matos escreveu sobre um grupo na Barqueira que tinha uma actividade social, o exercício da solidariedade, na Barqueira,aqui mesmo no Sobral, aqui na comunidade.
    As pessoas morreram, as ideias pereceram com elas, tornamo-nos egoístas, pretensiosos,o importante é que não nos falte para a "bica", para o faz de conta da aparência, e se alguma coisa se fizer, de "caridadezinha", que seja bem visível de encontro a aquisição de estatuto (oco, balofo), digo eu.
    Gostava de ter tido oportunidade de trabalhar com estes Josés Vieiras,com aquele Manuel da Barqueira!

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  5. Com a sua invejável lucidez, o Sr. José Vieira deixou que fosse a humildade a pautar a história de vida que nos quis contar; ficou-se pelo essencial, pelas pequenas coisas, pela simplicidade … Não se lamentou das curvas, das encruzilhadas e dos penhascos que certamente, como todos nós, encontrou pela vida fora. Nem quis vangloriar-se daquelas pequenas/grandes alegrias, que também teve, e de que tanto gostamos de relatar e até aumentar…

    Que ele participou em muitas “aventuras” sei-o do que ouço frequentemente nas mesas dos cafés…É pena que quem as viveu com ele, ou perto dele, não venha dar testemunho dessas experiências.
    Inês

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  6. Será que no Sobral ninguém conhece este blogue? Acho que os artigos são de interesse e não vejo que se interessem pelas pessoas que foram importantes cá na terra. Onde andam e que fazem os importantes cá da terra? Tem razão professor é preciso que não falte o dinheiro para a bica o resto cada um que se governe. Lamentável.
    Adelaide

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    1. Lamentável, é mesmo o termo, D. Adelaide.
      Que interessa, agora, que o Sr. Vieira fique feliz por ver/ler – infelizmente ouvir ler – uns banais comentários a seu respeito?
      Claro que as pessoas importantes têm mais que fazer… há que guardar as energias para, na devida altura, fazerem os discursos da praxe e poderem ficar na fotografia.
      Inês

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  7. São vidas cheias como a do Sr Zé Vieira, exemplos vivos de coragem que deixam histórias 'na vida da gente' como diz o fado de Mariza.
    Sobral Sénior, continuem! é um cantinho que 'me sabe bem' visitar.
    EditeCosta

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