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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Viagem pela rua da minha infância

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Por opção, estou sozinha nesta varanda virada ao mar, e com um sol lindo, mas o meu pensamento está no Sobral, nos meus montes, naminha rua. Não na rua onde moro, mas na rua da minha infância. Sem dúvida que agora está maior, mais bonita, mas está também mais pobre. Recordo as pessoas, as coisas, as lojas, os ofícios e o comércio que havia na minha rua, a Miguel Bombarda, com início no Campo da Feira.
Começo por um ferreiro, o senhor Alfredo, com a sua forja, o fole, a bigorna, o ferro em brasa; dez metros depois a Senhora Joaquina Félix a fazer os seus belos enchidos para serem vendidos no talho. Ainda no princípio da rua, o António Libânio, cutileiro e também ferreiro. A mulher, a tia Henriqueta, uma mulher de coração grande, sempre com medo que as pessoas tivessem fome, oferecia de comer a toda a gente. O Manuel Libânio, funileiro, era um homem de grande habilidade, tinha em casa uma aldeia em miniatura feita em folha, com moinhos de vento e banda de música, nada faltava, tudo em movimento.
Rua Miguel Bombarda
Na porta seguinte, o José dos olhos grandes, sapateiro; um pouco mais abaixo a barbearia dos Melos, a seguir a Viagem pela rua da minha infância, a padaria e a taverna do António, o Bibi; a casa dele, e da mulher, a tia Glória, era a casa de todos: a rapaziada adorava ir pôr a mão na massa dos bolos, e dançar ao som do acordeão do tio Bibi. Na porta seguinte a Maria Félix, que fumava rapé e tinha duas vacas no quintal, que atravessavam a casa para irem para o dormitório. Algumas vezes, a neta mais nova entretinha a avó para nós irmos mugir as vacas e bebermos o leite: que bom que era!...
Ferro de engomar de alfaiate
Caminhando mais uns passos, estava o senhor Camelo, alfaiate com o ferro à porta, para o vento manter o carvão aceso; no mesmo prédio, mas no andar, outro alfaiate, o Amaral e a sua bondosa mulher, costureira. Ele era um homem do Norte, baixinho e gordinho, um bom alfaiate; e a esposa, a menina Idalina Libânio, sempre pronta a ajudar: a palavranãonão existia para ela. Ajudei a vesti-la na sua última viagem.
Rua Miguel Bombarda
A seguir o Joaquim Firmino com a sua taverna: a mulher fazia os petiscos e ia dizendo aos fregueses, comam, comam, o meu jaquim gosta muitoNo primeiro andar morava a mestra Xavier, professora que tocava piano - acabou a vida a vender lotaria! Ao lado mais uma casa, a da Maria Alfazema, especialista no pão-de-ló. A seguir o Lima cutileiro e, na porta ao lado, o Félix funileiro. A seguir a Cesária, com mercearia e taverna. Seguindo o roteiro, vinha a mercearia da tia Luisa do Chato. O marido fazia peneiras e arranjava guarda chuvas. A tia Luisa, sempre de sorriso aberto, e a meter o dedo no alqueirePor um acaso, fui eu queherdeiesse alqueire, ainda o conservo na minha sala.
Depois, ao lado, a casa de fazendas e mercearia da família Máximo. Era uma família também de agricultores, uma porta aberta para ricos e pobres, na mercearia a folha azul dos fiados não tinha fim. Quase ao fim da rua o Guilherme ferrador a calçar os animais. Do outro lado da rua, a primeira casa era a da D. Palmira Lopes: nos últimos tempos vendia velas e artigos de cera. A seguir o Augusto, correeiro e albardeiro, que mais tarde passou para o filho Augusto Corado, o qual passou a ser também estofador e meu marido. As irmãs dele eram quatro lindas raparigas, naquela casa havia sempre rapazes à porta. Era o ponto de encontro das meninas da terra. Na porta seguinte, um mecânico onde muitos jovens aprenderam o ofício; depois a sapataria Leandro, os Bombeiros e a camionagem Serreira.
Casa antiga

Tudo isto numa rua. Sempre ouvi dizer que nessa rua tinha havido uma fábrica de lanifícios, e por isso as casas eram todas iguais, uma porta uma janela. Com o tempo foram-se alterando, actualmente são poucas as que existem e com modificações. E além das lojas havia gente, famílias. Recordo a casa do Álvaro Branco, que por sinal tinha mais de preto que de branco, era uma casa que vendia de tudo, ferragens,
Rebuçados "matacões"
loiças, tintas, e até os famosos rebuçadosmatacões, a meio tostão cada um. No carnaval, o tio Álvaro era o mártir da rua: a D. Bia Lopes até os rolos de passadeiras da loja estendia pela rua fora.
Repito: tudo isto, mais o que me esqueço, numa rua. Outros tempos. Hoje faz-me pena ir à minha rua.

Lisete Corado

11 comentários:

  1. A D. Lisete já aqui há tempos nos tinha trazido algumas recordações de infância, de situações que ela própria vivera na rua onde cresceu. Agora “armou-se” em repórter e decidiu mostrar-nos o que era essa rua nesse tempo, a vida que tinha. E é de pasmar, eu acho. Se não soubesse que a autora é uma respeitável e respeitada anciã desta terra, seria tentado a pensar que ela não tinha resistido à tentação de “meter o Rossio na Betesga”.

    Na minha infância e adolescência, quer na aldeia quer na cidade, tive oportunidade de conviver com ferreiros, funileiros, latoeiros, ferradores, tanoeiros, merceeiros, tavernas, padeiros, sapateiros, alfaiates…Mas, para “correr” todos eles teria de palmilhar uns bons quilómetros, por muitas ruas, caminhos e lugares: ter tudo isto, e mais ainda, numa rua nem muito comprida, é-me difícil de imaginar. E não só as coisas, também um pouco da própria vida, do ambiente da época: as vacas que atravessam a casa para irem para o curral, as passadeiras da loja a passarem a tapete da rua sem ninguém ir parar ao hospital, a merceeira “a meter o dedo no alqueire”…acho que percebemos para quê…É pena Hollyhood ser tão longe, talvez nos fizesse uma reconstituição viva do que essa rua era…

    Mas, é justo dizê-lo outra vez, este post (linda palavra portuguesa esta!...) não seria o que é neste blogue sem o esmero das ilustrações do nosso “gestor”…Que, além do mais, até os “matacões” nos trouxe e a cores; e, mais ainda, começou a querer que os leitores acrescentem informação além da dos textos publicados, clicando nas palavras que ele vai pintando de azul ao longo do texto. E neste caprichou mesmo…Fazem uma bela equipa, a autora do texto e o autor das ilustrações…

    José Auzendo

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  2. Querida amiga Lisete
    As suas lembranças pormenorizadas da rua da sua infância, é de "invejar". Memória priveligiada que recorda todos os cantinhos e pessoas que neles viveram, recoradações muito queridas que ajudam a viver, pois recordar também é viver.
    Os tempos e os hábitos mudaram, mas o "registo no nosso cérebro" faz-nos relembrar o que vivemos no passado e permite-nos comparar com o presente, que apesar de "mais evoluido" nem sempre é melhor.
    Deus lhe conserve por muitos e bons anos essa memória fantástica.
    Beijinhos da amiga
    Lourdes.

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  3. Amiga Lisete
    Não cresci nessa bela rua mas lembro-me igualmente de todos os artesãos mencionados e por força do destino ainda vivi nessa rua e sinto tristeza quando lá passo pois sinto saudades, principalmente do edifício dos bombeiros onde os meus filhos tanto brincaram e onde o meu sogro tanto trabalhou nessa Instituição.Passava os tempos livres a lavar e arranjar as viaturas para que tudo estivesse operacional quando tocava a fogo.
    Como morava mesmo ao lado era sempre o motorista de serviço.
    Era de facto uma rua onde todos pareciam uma grande família.
    Um abraço da Manuela também conhecida por Nélinha

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  4. Amiga Lisete

    Nos tempos de criança, em que não havia ainda televisão em Portugal e em que a telefonia era um "luxo", do qual não podia usufruir, a solução era ir para a cama cedo, e o sono onde andava ele? Muitas vezes lembrava-me de contar as pessoas que havia na vila. Era sempre a sua rua a última a contar, por ter muitas casas pequeninas e geralmente eu acabava por cair nos braços de Morfeu, sem acabar a contagem. E embirrava sempre na casa da "Tia Betina", nunca sabia ao certo quem lá vivia. Por laços familiares e pelo primeiro trabalho, fui parar à sua rua, que passou também a ser um bocadinho minha. Interessava-me pelas suas histórias, que ouvia com prazer e que vou reproduzir algumas delas.

    O Álvaro Branco era um paradoxo e namoradeiro: pelo Carnaval fizeram-lhe um verso assim: Álvaro Branco, branco?/escuro como o pano-cru/namoras duas mulheres/com qual delas casas tu. Ele casou com a pior porque, coitada da pobre senhora, foi doente a vida inteira. O Tio Manuel da Bicha, que era contínuo nos bombeiros, e que também lá trabalhava de sapateiro, no rés-do-chão, fazia de vez em quando uns petiscos para o pessoal que frequentava a Associação e era hábito ele dizer: meus senhores são servidos de uns pastelinhos "pagando"? A D. Palmira Lopes tinha um pátio onde recolhia animais para pernoitarem, quando iam para as feiras, e ela sempre que podia ia mugir as cabras para recolher o leite: uma noite enganou-se e quis mugir o bode, que, coitado, berrava e ela insistindo dizia:" Nem mé nem meio mé, estás aqui tens que dar leite como as mais".


    Falava-se muito de histórias do alfaiate Sr. Camelo, um homem de Seia, que tinha muitas histórias sempre para contar. Um dia ouvi uma frase rimada, pelo Carnaval, que penso ser assim: "Coradinho da minha rua, faz xixi na cama e diz à mãe que sua". Quem teria sido a autora? Não me recordo, mas parece-me ter sido uma provocação de amor! Lembra-se Lisete? Tudo isto também se passou na Rua da Bela Vista (actual Miguel Bombarda).
    Maria Alexandrina

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  5. Boa noite amiga Alexandrina
    Obrigada pelo seu depoimento ajudando a complementar a descrição da rua da vossa infância. Só sei que adorei.
    Quero agradecer o momentos HILARIANTES que me proporcionou!!!
    Ah, ah, ah,.... para rir estou por aqui.
    Beijinhos da amiga
    Lourdes.

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    1. OLÁ BOM DOMINGO LOURDES!!!

      DESCULPA PELO ATREVIMENTO DE COLOCAR AQUI A MINHA RESPOSTA
      MAS COMO O CREPÚSCULO DESAPARECEU VENHO AQUI AGRADECER!!!

      OBRIGADO PELA VISITA, PELAS PALAVRAS AMIGAS!!!

      POIS EU ESTOU AGORA A PREPARAR O MEU NINHO FINAL, O MEU OÁSIS DE REFUGIO SE A VIDA ME DEIXAR COM SAÚDE USUFRUIR!!!
      OU...SE OS ACONTECIMENTOS DA VIDA ME EMPURRAREM PARA LÁ MAIS CEDO DO QUE O PREVISTO... PELO MENOS MAIS UNS 8 ANOS DE TRABALHO!!!

      1 BEIJINHO AMIGA!!!

      VOLTE SEMPRE!!! 1 BEIJO LÍDIA

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  6. Para as amigas Alexandrina e Nelinha. Nós, Sobralenses, temos sempre algo em comum. A Nelinha falou no sogro e com muita razão: foi um grande homem de trabalho e um belíssimo bombeiro; e, falando dos teus filhos, fizeste-me recordar os caramelos que eu fazia para eles e para outros lá da rua: ainda hoje, já homens, falam disso.

    E tu, Alexandrina, tens memória de elefante, pois essa do Coradinho é comigo, mas podes crer que me tinha esquecido por completo. Obrigada por me teres lembrado. Lembras-te do tio Manuel (da Bicha)? Além de ser bombeiro também era ele que fazia os capacetes para os bombeiros. Estou convencida que os bombeiros de hoje não sabem disto.

    Que bom ter este blogue para trocarmos as nossas vivências, as nossas recordações. Quando formos para um lar já não teremos memória.
    Beijocas
    Lisete

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  7. De realçar a memória das “meninas” que viveram na Rua da Bela Vista: não era uma rua qualquer, mas uma rua com passado e com história(s). Cada uma que escreve sobre ela acrescenta-lhe mais uns episódios, e eu, por mais que leia e me esforce, não consigo imaginar como cabia tanto acontecimento naquela rua onde passo todos os dias, de carro, sem ver “ninguém”, nem espaço para alguém passear ou andar, quanto mais carregado com alqueires de feijão, funis ou … albardas…
    Pela descrição, um verdadeiro “Outlet shopping” da época.
    Inês

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  8. para esclarecer a menina Ines, a rua da Bela Vista era um verdadeiro Corte Inglez os burros iam provar as albardas ,as cabeçadas todas enfeitadas com fitinhas de várias cores,saiam da alfaiataria prontas para um casamento.

    Lisete

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  9. querida Lizete!
    Agora sou eu que moro , nessa rua tão cheia de tradição e ainda com encanto...
    Há amigos...quando se ouve barulho na rua vimos á janela para ver se a nossa ajuda é necessaria...enfin outros tempos...outros hábitos mas o amor que sinto por estas pedras é omesmo!
    Alizete foi uma das pessoas que me ensinou a amar a nossa rua....
    OBRIGADO!

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    1. Dirijo-me a si, que fez o comentário ao meu texto “A rua da minha infância”, dizendo que começou a gostar da rua "ensinada" por mim. Como se deve ter esquecido de “assinar” gostava que se identificasse, porque não imagino quem possa ser. Ainda por cima chama-me "querida Lisete", mais curiosa fico ainda…
      Obrigada
      Lisete.

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