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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Conversas com o meu amigo eterno

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Pr. Dr. Eugénio Dias (Actual)
Atravessei a vila a pé, com passo lento porque, como ela é pequena, não nos leva muito tempo até onde se queira chegar. No entanto as minhas pernas, já um pouco cansadas pelo peso de quase 70 anos, levam-me a sentar-me num dos bancos que se encontram na Praça Dr. Eugénio Dias. Recordo as transformações que ao longo da minha vida assisti nesta Praça, de empedrado para alcatrão, de árvores de frutos para, por diversas vezes, árvores ornamentais; os candeeiros também mudaram, agora tem projectores que enchem a Praça de luz, mas olhei para ti e, meu amigo, desde sempre te vi aí, estático, solene e talvez um pouco altivo, consideras-te o ex-libris da vila, o anfitrião de uma sala de visitas! Sabes, és belo e apetece-me conversar contigo.
Quantas Bandas de Música da outra margem, Montijo, Seixal, Almada, escutaste? E do Norte? Nunca disseste da que mais gostaste!... Não... Não é essa a tua função, tu recebeste todas de braços abertos. Alguma vez ouviste uma “fífia” de um músico? Uma nota que passou ao lado? Claro que ouviste, mas continuaste calado porque quem escutava não deu por ela. Porquê humilhar quem errou? Esse é o teu feitio. Do que tu gostavas mesmo era de ver os Sobralenses felizes.
Pr. Dr. Eugénio Dias (sec. xx)
E a nossa Banda, quantos concertos aqui deu e que saudades dela deves ter. Lembras-te de o Frederico Fragoso, numa noite de concerto, ter batido com tanta força no seu bombo que a maçaneta saltou e caiu perto dos espectadores? Mas ele continuou a tocar. E tu, envergonhado, mas ao mesmo tempo com vontade de rir, mantiveste-te sereno, como não se tivesse passado nada.
Conheces todos os Sobralenses… Lembras-te bem do Venceslau, do José Santos, do Frederico e da Júlia, do João do Cabo, do José Vieira, talvez já não o vejas há muito tempo, mas, sabes, ele ainda passeia por aí! Do Serreira, do Costa da Farmácia, e depois dele todos os que por lá passaram; do José Reis e dos Félix do Talho (um ainda anda por cá…). Foram todos teus vizinhos, que vias todos os dias, deves estranhar ter deixado de os ver… Sabes, a idade não perdoa e tiveram que partir, só tu continuas no teu lugar, por ti os anos também vão passando, mas és mais resistente, e os teus amigos cuidam de ti.
Pr. Dr. Eugénio Dias (sec. xx)
O que te incomoda, com toda a certeza, é o peso de tanta gente para ver as “pamplonas”… Que te pisam, te desrespeitam, se empoleiram nos teus ferros para conseguirem ver melhor, os mais destemidos aficcionados a levarem uma cornada ou a caírem no chafariz. Aí também ris, quem os manda meterem-se com os touros? E quando eles parecem pintos, molhados da cabeça aos pés, é mesmo de rir.
Quantos cantores e grupos musicais te passaram por cima? Nem fazes ideia, mas tu tudo aceitas e recebe-los bem porque o teu povo está contente e agradece a tua disponibilidade e porque, de qualquer forma, também contribuis para a divulgação da nossa música.
E as crianças que abraças no teu seio, quando brincam aos bois ou à roda dos 5 cantinhos, a tua ternura é impressionante e julgo que as proteges, evitando que elas caiam. Quantas gerações aí brincaram? Muitas …
Lembras-te de quando parava a camioneta Bucelense para despejar pessoas e receber as que iam de viagem - que podia ser até Lisboa? As moças despediam-se dos namorados que estavam a fazer o serviço militar, e os beijos eram dados só em pensamento, que outros não eram permitidos. E das raparigas e rapazes que passavam algumas horas conversando sentados nos bancos da Praça e, no escurinho da noite, o que viste não vais nunca contar, pois não? Os namorados aproveitavam a distracção do “acompanhante” para um momento de ternura; sim porque como te deves lembrar, tinha que haver sempre um acompanhante. "Como é diferente o amor em Portugal", também tu deves ter pensado muitas vezes. Agora, já reparaste, nos bancos da Praça os namorados têm toda a liberdade e tu, meu maroto, fechas os olhos, finges que não vês…
 Coreto em construção (1914)
Após o 25 de Abril, quantos comícios ouviste? Tu que viveste todos os anos da ditadura, em que ninguém ousava subir-te para protestar… Mas depois, sim, foi lindo não foi? E tu, todo povo, todo democrata, em grande actividade. Agora sim, consentias que subissem, que falassem, porque o podiam fazer livremente.
Nasceste em 1914 e espero que as gerações futuras não se esqueçam de ti e te cuidem,para que possas continuar a conviver com o grande benemérito sobralense que foi o Dr. Eugénio Dias. Eu quero que quem passe por aqui, daqui a muitos e muitos anos, ao olhar-te possa dizer: Que lindo Coreto que o Sobral tem…


 Maria Alexandrina Reto

6 comentários:

  1. Amiga Alexandrina
    Esta sua conversa com "o seu eterno amigo" está demais. Fala com Ele, recorda momentos, passagens da sua vida e da dele, e dá-nos a conhecer a sua origem desde os primórdios.
    Sempre gostei muito de coretos, nunca percebi se pelo "monumento" em si se por lá actuarem as bandas, espectáculo que sempre me cativou. Desde os anos 60 que sou fã deste coreto e até já sou contemporânea de algumas das suas modificações inclusivé as da praça. Mas por mais voltas que dêm, nunca perde a sua beleza. Obrigada por mais este belíssimo depoimento. A pouco e pouco vão saindo do "velho baú" muitas hitórias que já vão começando a ficar na lista do esquecimento. Bem-haja pela sua participação valiosa, e a quem os sobralenses, pelo menos os mais novos que desconhecem muito do passado, deverão estar gratos, pois o maior património que podemos ter, é o cultural. E a senhora tem tentado ajudar a que ele não morra de vez.
    Quanto aos forasteiros, de certo dirão como a senhora diz: "Que bonito que é o coreto do Sobral!..."
    Beijinhos da
    Milú.

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  2. No tempo em que os animais falavam, La Fontaine "inventou" as Fábulas...Agora que as nossas Praças e Jardins estão quase sempre vazios, sem ninguém, não há outra solução se não conversar com os monumentos, que é como quem diz "com os nossos botões". E esta foi uma boa maneira de trazer o ambiente, as vivências de quase 100 anos de vida de uma Comunidade. E de vermos como ela mudou os seus hábitos, certamente não para melhor: passamos demasiado tempo dentro, em frente a qualquer coisa, falta a convivência social, o disfrute do ar livre, mesmo se agreste.

    Ficamos, pelo menos, a saber que já foi diferente...que à volta do Coreto do Sobral já houve gente, vida. Voltará a haver?

    José Auzendo

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  3. D. Alexandrina, este seu “amigo eterno” deve sentir-se completamente só e abandonado. E deve ficar surpreso quando alguém se lembra dele recordando como foi importante na vida da comunidade.

    Hoje, sentada na esplanada de um café da Praça, lembrei-me do seu artigo e fiquei a pensar que o anfitrião merecia uma “sala de visitas” mais acolhedora, mais apelativa, onde ao passar apetecesse parar por qualquer razão ou sem razão. Observei que, embora bonita e ampla, não tem qualquer atractivo, não lança um único “apelo" para a desfrutarmos: uma fonte, um repuxo de água, um (um só) canteiro de flores coloridas e bem tratado, um banco cómodo protegido do vento, da chuva, do sol, que sei eu que nem sou de cá…

    E como “não sou de cá” não posso pôr-me, como a senhora e outros, a reviver o que nessa Praça já se viveu. Vive de memórias a nossa Praça…Vivam as memórias de quem as tem e connosco as partilha. Valha-nos isso.
    Inês

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  4. Tem razão D. Inês, quando diz que a Praça precisa de algo mais apelativo, ela tão ampla,tão vistosa... precisa de cor. Tenho visto muitas Praças por este País fora, umas mais bonitas e outras menos, mas fico a apreciá-las e acho sempre a minha mais bonita. No entanto, nelas encontro qualquer ornamento que acho que ficaria bem na Praça Dr. Eugénio Dias.
    Talvez que uns canteiros de flores? Como tão bem diz. Será que umas esplanadas com artigos artesanais? O tempo é de austeridade, mas há ornamentos mais acessíveis.
    Temos arquitectos camarários, que melhor do que nós, podem perceber o que ali faz falta,mas na minha modesta opinião é preciso que o façam.A sala de visitas tem que ser mais atraente...
    Maria Alexandrina

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  5. A dona Alexandrina sentou-se no banco da Praça fazendo companhia ao
    seu eterno amigo coreto. Ensaiou um diálogo imaginável com ele, não
    esquecendo todos os filhos da terra que já partiram, as bandas de
    música na altura das festas, as pamplonas que ainda hoje se fazem
    felizmente. O coreto, com a alma mergulhada na solidão, não conseguiu
    dizer uma única palavra, deixando a dona Alexandrina a “falar para o
    boneco”. Ela vingou-se e contou- nos a conversa.

    Beijinhos da amiga
    Mariana

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  6. Nunca tinha percebido a razão que eu achava quando atravesso a Praça. Só serve mesmo para passagem. Realmente falta-lhe qualquer coisa, é bonita é ampla mas não convida ninguém a vê-la como ela merece.
    Um artigo muito interessante
    Adelaide

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