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sexta-feira, 1 de junho de 2012

A minha rua



Estou perto dos 80 anos, o que me permite ter muitas recordações de muitas pessoas já desaparecidas, algumas figuras muito típicas outras menos, mas todas muito queridas.


Na minha rua, a rua Miguel Bombarda, antiga rua da Bela Vista, agora a rua de saída do Sobral para a Arruda, tudo era uma família, as portas estavam sempre abertas. Quem não se lembra da tia Glória, (como era conhecida), uma minhota rechonchuda e rosada, sempre com um sorriso nos lábios, casada com tio António (Bibi de alcunha)? Tinham uma padaria e fabricavam os belos “inspeciones” e os cremosos suspiros que nós, raparigas pequenas, ajudávamos a bater para, às escondidas, metermos o dedo para lambermos e, à saída, enchermos os bolsos de pevides, também elas assadas no forno de lenha.



Ao fim do dia, tio Bibi puxava pela sua concertina e tudo dançava, alguns o fandango, outros o bico tancão, dança em que minha avó era especialista. Desta família vive ainda, com mais de 90 anos, o meu amigo José Vieira, e o cunhado, o Frederico Tavares, também com 90 e tais, figura com muitas histórias engraçadas.



Dessa rua da minha infância também eu guardo muitas recordações, umas agradáveis outras bem tristes. Tento fixar as agradáveis mas muitas vezes são as outras que me vencem. Não sei quem sou? É pergunta que faço muitas vezes a mim própria. Sou uma saudosista, uma sentimentalista ou possuo uma sensibilidade ridícula no mundo actual e desajeitado em que vivo?

Presentemente, alguma criança sabe sonhar acordada? Lembro-me de como de um vaso de flores eu me punha a imaginar um jardim, muitos canteiros, muitas plantas floridas, onde brincava. Pauzinhos e pedrinhas transformava-os em pessoas e punha-as a passear no meu jardim inventado. Dançava uma tarde inteira com uma vassoura, que passava a ser o meu namorado daquelas horas felizes. Um caixote de madeira era o meu automóvel, não tinha marca, mas era lindo, era o que interessava: muito eu viajava, feliz, por essas estradas que eu própria abria…

Tudo isto antes de entrar para a escola primária, porque até aí não tinha autorização de sair para a rua.

Na escola as histórias já são outras, há coisas boas que nunca se esquecem, mas também as más: lembro-me muito de professoras que, em vez de ensinarem com bondade, ensinavam batendo cruelmente nas crianças que nós éramos.

Recordo também a catequese com muita amargura. Tanta rata de sacristia que só não roíam o que não podiam…Lembro-me do dia antes da minha primeira comunhão: a minha catequista deu-me um vestido para eu trazer para a missa desse dia solene. Mas, à saída da porta, uma rata velha tirou-mo e deu-me um já muito velho e feio… Quando cheguei a casa a minha madrinha, Ermelinda Máximo, para mim “a Folha”, como toda a gente sabia que eu lhe chamava, a pessoa que mais me amou na minha meninice e a quem mais amei também, olhou para aquilo e disse: “Vai entregar esse vestido a quem to deu. Assim fiz, triste, porque pensei que já não ia ter festa com os meus amigos.
Mas não, tive festa sim: aquela senhora, que era mesmo uma senhora, não se deitou toda a noite e, de um lençol de linho, fez-me um vestido lindo, lindo.

Lá fui com uma pessoa amiga para a Igreja, a minha madrinha ficou ainda a preparar-se, mas foi ao terraço dizer-me adeus, e disse “vais linda”, parece que a estou a ouvir…

Isto foi há 70 anos, na minha rua. São estas pessoas boas que deixam saudades. E já restam tão poucas…

Lisete Corado

11 comentários:

  1. Minhan querida amiga, afinal não está perdida na vida actual, como nos diz,mas sim bem viva. Com prosas como esta pode ter a certeza que muito vai ensinar e ajudar a que os jovens possam saber como construir felicidade com "carros de madeira sem logotipo de marca, mas com a marca do AMOR. Vai mostrar como com um simples vaso de flores podemos construir os mais belos jardins da nossa vida e isso minha amiga é algo que como seu verdadeiro amigo, desde já lhe agradeço, pedindo como contrapartida que continue a ejudar-nos a ser mais do que pessoas, sermos cidadãos preocupados com a ajuda para um mundo que desejo seja cada vez mais fraterno e partilhado. Bem haja

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    1. Para um desconhecido amigo.

      Diz o senhor no seu comentário que é meu verdadeiro amigo,para ser
      assim,tem que me conhecer,eu confesso que não me recordo de ter algum
      amigo com esse nome,e eu nunca me esqueço dos meus amigos.
      Agradecia que me esclarecesse ,de contrario fico a pensar que estou a
      ficar chéché.
      Lisete Corado

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    2. Pois essa é a minha desvantagem. Afinal só sou conhecido por ser "o marido da Ana brasileira". Espero que o possa ser por ser eu próprio.

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    3. Não, o senhor é conhecido por ser o Manuel Augusto, foi assim que se me apresentou, se lembra? É assim que o conhecem outros amigos seus...Deixemos sua mulher...em casa, como deve ser, desculpe, queria dizer: deixemos sua mulher em paz...

      Pode "contornar" a questão mantendo o também por mim desconhecido apelido, lindo aliás, de Mendes Hortêncio, e "assinar" depois com Manuel Augusto. Deixa assim de ser um desconhecido não anónimo...Se eu assinasse só Correia Monteiro, estes são os meus apelidos, o sr. reconhecia?

      José Auzendo

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  2. Finalmente a minha querida amiga (e vizinha) Lisete se deu ao trabalho de nos prendar com mais uma descrição do passado desta linda terra. Poderiam ser tempos difíceis, é certo, e nem tudo ser bom, mas eram tempos mais puros, mais sãos. Havia mais caridade e amor pelo próximo, e quando o havia era sincero, sem hipocrisias. Os vizinhos eram mais unidos, como que uma família, daí poderem ter as portas todas abertas. Também apesar das grandes dificuldades, a segurança era outra, porque se não a houvesse, as portas teriam que estar todas fechadas, como agora, no tempo em que se fala tanto de Liberdade! Por onde é que ela anda que eu não a vejo?
    Fico feliz por ter episódios e recordações que ainda a fazem sonhar! As crianças de antigamente sonhavam, imaginavam, de quase nada construiam um mundo na cabeça delas e eram felizes à sua maneira. Hoje têm tudo e mais alguma coisa e nunca estão satisfeitas. Tudo, é pouco. Julgo que na inocência de antigamente é que estava a felicidade das crianças. Hoje sabem tudo cedo demais, e na altura das vivências, já nada tem encanto.
    Continue a sonhar e a oferecer-nos mais descrições de coisas que a fizeram feliz, minha querida amiga. Prometo que estou aqui para a "melgar". Já me conhece bem ...
    Um xi-coração e beijinhos da amiga
    Lourdes.

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  3. Gostei imenso da rua, dos vizinhos, de toda
    a vivencia descrita, tão ao meu gosto!!!
    Parabens, é lindo o seu "trabalho"!!!

    Um abraço
    Avoluisa

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  4. Não sei como me vou safar desta, mas vou tentar.

    Falar da D. Lisete, “o raio da velha”, como alguém que ela bem conhece costuma dizer, envolve tantas emoções que o meu discernimento fica embaciado. Conhecemo-nos, já lá vão uns anos, nas aulas de hidroginástica, olhámos uma para a outra e foi amor à primeira vista.

    Não a conheci a viver na Rua da Bela Vista, mas sei o quanto ela adorava aquela rua, a vizinhança e as saudades e o carinho que tem pela casa que ainda é dela.
    Contou-nos estas histórias, mas muitas mais poderia ter contado com a mesma emoção e a mesma ternura.

    Saudosista de afectos, sentimental, de grande sensibilidade e sobretudo amiga do seu amigo, ciosa mesmo, (não posso dizer ciumenta). Apesar do que diz, com a alma escancarada, não ficou parada no tempo e ajeita-se muito bem neste desajeitado mundo.

    Gratificante é a certeza de que ainda relampeja nela alguma infância. Agora, noutra rua, continua a sonhar acordada, transformando os “seus montes” que tanto adora, em verdadeiros bosques encantados e montanhas verdejantes…

    Obrigadinha, obrigadinha, obrigadinha.
    Inês

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  5. Quem não tem uma rua a que chama sempre sua? Mas a sua, minha amiga, está descrita tão filosóficamente...Os vizinhos eram a nossa família, os nossos amigos, recordo-me tanto dos meus! Não tenha medo de ser o que quer que seja, saudosista ou sentimentalista, é com toda a certeza... genuína.

    Também na minha rua eu apanhava "caquinhos" e que grandes banquetes imaginários fiz! Os convidados eram postais ilustrados, com quem falava e que me respondiam. Lembro-me bem das fotografias em que senhoras de olhar lânguido tinham sempre, junto ao peito, um grande ramos de flores. E porquê postais ilustrados? Que forma estranha de brincar. Simplesmente, substituíam as bonecas que não tive. Depois dançava rua abaixo, rua acima, fazendo rodopiar a minha saia, num valseado de um Strauss qualquer, que só existia na minha imaginação. Assim completava uma pomposa festa, como via nos filmes.
    Sonhar é fácil ! Quando não se tem brinquedos e se quer brincar, obrigamo-nos a sonhar, sonhar e sonhar. Imagina-se e inventa-se.

    De uma coisa tenho a certeza: se eu tivesse tido uma boneca, como as que eu via às vezes nos braços de outras crianças, tinham sido muito mais felizes as minhas brincadeiras.
    Maria Alexandrina

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  6. Minha querida Lisete, como me fizeste feliz com "a tua rua"; como eu gostaria de juntar-me a ti e enfeitar as nossas ruas com as nossas recordações e as nossas histórias tão verdadeiras....... É bom poder recordar a nossa rua. Também recordo com saudade as visitas que fazia à casa da ti...Glória e da concertina do ti...Bibi!
    Fizeste bem falar da tua rua, mas sabes? Essas recordações são bem comuns, pois também eu visitava a D. Ermelinda Máximo quase todos os dias e lembro-me muito bem dos bolos que a Sara fazia. Sabes Lisete? O tempo, nesse tempo, era maior e nós fomos felizes com tão pouca coisa....Lembras-te das passadeiras do Sr. Álvaro, que a D. Bia estendia pela tua rua abaixo, pelo Carnaval? Lembras-te do bode da D. Palmira Lopes, que ela forçosamente queria que desse leite, como as ovelhas? Que me perdoem os mais sensiveis, mas isto foi mesmo verdade e tu sabes que sim.
    Gostei da tua rua, minha amiga, acho que a descreveste muito bem e concordo inteiramente com esse teu "grande amigo". Deves continuar a ajudar-nos a sonhar.
    Um beijo cheio de flores, dessas flores que tu própria sonhaste,
    Mimi.

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  7. A verdade nua e crua, se aos factos dermos o valor que têm, é que se agora me está a ler, se agora aqui estou a escrever, à D. Lisete o devemos: você, leitor, e eu. Foi ela que, fazendo-se convidada (dizendo-se convidada, contestará ela), começou a aparecer cá por casa ... para almoçar, atraída, dizia ela, pelas belas vistas deste "monte" de onde eu teimava em não sair.

    E um dia, já lá vai um bom par de anos, lá se decidiu a convidar-me a almoçar em casa dela, na companhia de uma trupe de amigos seus...Que são muitos! E assim comecei a "descer do monte", a conhecer pessoas da "cidade".

    As memórias que nos contou já as conhecia bem, e muitas outras mais. Esperemos que também estas venham aqui parar. Mas foi uma enorme surpresa ler aquela sua bela expressão, tão tragicamente documentada, "ratas de sacristia", que não lembro de ela ter usado oralmente e de que já nem recordadva da minha juventude...Eu que tantas vezes a usei em Viana do Castelo...

    Mas o testemunho da D. Lisete, se vale por si, e vale muito, vale também pelo comentário que proporcionou à Mimi: quem não ficou em pulgas para saber o que é isso das "passadeiras do sr. Álvaro" ou, especialmente, do "bode da D. Palmira" que devia dar leite?

    Qual delas nos vai deliciar com tudo isto? Quem ganha "as gomas"?

    José Auzendo

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  8. Saudosista!Sentimentalista!Deveriamos ser todos(creio eu.Era sinal de que tinhamos recordações.Hoje ate eu acho que gostaria de ter vivido um pouco nessa altura(vivi pouco).
    Não é emlhor ter essas recordações do que eu quando chegar á sua idade? Que falarei da minha rua?Quase não nos encontramos,não partilhamos coisa algumaalguns nem o nome eu sei, o vi seu rosto.
    as crianças hoje que sabem de sonhos!
    Espero que continue a escrever textos como este,pode ser que muitas pessoas o leiam, e vão ficando curiosas e queiram experimentar,talvez um dia possamos ter novamente a liberdade de manter a chave na porta.Um bem haja para si.

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