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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Lembranças...de outras vindimas


Comecei a frequentar a escola primária em 7 de Outubro de 1950, no Sobral de Monte Agraço…Fiz o meu pequeno percurso escolar, de apenas 4 anos, e nada mais: as consequências da 2ª. Grande Guerra, ainda se faziam sentir, o povo português era muito pobre, havia racionamento de comida e … de dinheiro. Muita gente, depois de uma vida inteira de trabalho árduo, tinha de esmolar para não morrer de fome. Lembro-me de ver, na sua maioria homens, aos sábados, baterem de porta em porta, pedindo esmola, “por amor de Deus”. Era minha função na família dar as esmolas, os tostões estavam numa taça, que a pouco e pouco se ia esvaziando. O pior era quando o dinheiro acabava na tacinha e eu, com voz sumida, o pequeno coração a bater mais forte, tinha que dizer " tenha paciência", significando que não tinha mais tostões para dar.


Tenha paciência soava a blasfémia, paciência tinham tido toda a vida: deslocavam-se para o trabalho ainda o sol não tinha nascido e voltavam já com o sol posto, durante anos e anos, e o resultado final era um cajado na mão esquerda para se apoiarem, e a mão direita estendida à caridade de quem também tão pouco tinha. Neste ponto lembrei-me da Júlia Chona, personagem rebelde do livro Vindima, de Miguel Torga: teria por acaso esta gente outra oportunidade, no contexto em que se vivia? Não, eles tinham mesmo que alugar o seu suor, para sobreviverem.

 Voltando à escola, lá fiz o meu brilhante exame da 4ªclasse, com direito a um lindo diploma, estava vaidosa no meu vestido novo, que estreei para o exame, mas também pela forma como me tinha portado.
Havia, porém, uma angústia, que eu tentava esquecer, por saber que, no ano seguinte, não me sentaria num banco de escola mas numa cadeira de um dos alfaiates do Sobral.

Esta mudança de assento influenciou todo o meu futuro: foi no alfaiate que conheci e namorei o homem que é meu marido há quase 50 anos, primeiro e último namorado, único marido: situação vulgar e natural nos meus tempos de jovem, impensável nos dias de hoje. Como não me queriam a trabalhar com o namorado, mudei de cadeira, desta vez em frente a uma secretária, com uma máquina de escrever, no Registo Civil. Assim se passaram cinco anos. Depois, nova cadeira surgiu na minha vida, na Adega Cooperativa do Sobral: fomos companheiras nas alegrias e nos dissabores durante quase 40 anos.

 Divaguei, e o português onde anda ele? Vou retomar o meu percurso académico. Quando saí da escola achava-me ignorante, a informação era pouca e os livros também mas, através da Biblioteca Itinerante da Fundação Gulbenkian, travei conhecimento com pintores, escultores e sobretudo os nossos escritores: Eça de Queiroz, Júlio Dinis… Já a aproximar-me dos 30 anos, aderi a um grupo para continuar os estudos, propus-me a exame no Liceu Nacional de Torres Vedras e, surpresa, quando entrei na sala para o exame, ela estava repleta de crianças de 11 e 12 anos que iam competir comigo…Que teriam pensado aquelas inocentes cabecinhas ao verem-me? Já com 3 filhas, sempre a trabalhar, decidi fazer algumas disciplinas do 5º ano dos liceus. Por circunstâncias da vida, parei no final da corrida, não ultrapassei a meta.

 Agora, todavia, com mais informação e com mais e bons livros,apercebi-me de que não é só na escola que se aprende. Reformei-me  e fechei a porta ao exterior, comecei a passar muitas horas sozinha. Mas esta vida sedentária e monótona  não era de facto nada boa para mim, em boa hora apareceu o Clube Sénior . Entre outras aulas, participo no português, de que estou a gostar porque é uma aula muito interessante.
Estamos a seguir a Vindima, de Miguel Torga, foi amor à primeira vista, apaixonei-me pelo tema que me é muito grato: traz-me à ideia as vindimas na vinha que os meus pais traziam de aluguer e que, todos juntos, pais e irmãos, vindimávamos e brincávamos ao mesmo tempo, a mãe assava as sardinhas que comíamos em cima do pão, à mão. Como me lembro do cheiro e do sabor daqueles almoços!...

Para compreendermos o humanismo de Miguel Torga, temos que nos situarmos no espaço e no tempo em que o livro foi escrito, 1945, tinha eu 2 anos. Naturalmente que durante a minha vida se deram grandes transformações, também o que se passa no livro não é actual, mas para o tempo em que foi escrito ele transborda de realismo. Já tinha lido Contos da Montanha, é saboroso regressar a Torga. O autor tem uma escrita fluida e suave, eu diria linda de morrer. Envolvi-me de imediato com o autor, e ele que me perdoe, até acho que penso como ele. O seu humanismo lembra-me o meu lado idealista, deveríamos ser todos iguais, não haver tanta gente com fome e outros tão ricos.Foi tal o prazer que senti ao ler Vindima que descrever as primeiras páginas em verso foi uma alegria difícil de transmitir.

Aqui acaba esta minha história, mas não a vontade de aprender.

Alexandrina

10 comentários:

  1. Cara colega Alexandrina
    Gostei muito de ler a sua história. Admiro a sua persistência desde criança, em não desistir do seu sonho de evoluir, apesar dos tempos difíceis e complicados com que se deve ter deparado ao longo da vida. Tem sido uma lutadora, mulher de muita coragem, mas depois do que li e do pouco que conheço de si, julgo que o destino a compensou por tanta dedicação e persistência. Sinto-me honrada por ter o privilégio de ser sua colega. Parabéns pela lição de vida. Obrigada.
    Um abraço da
    Lourdes Henriques.

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  2. Quisera ser uma colega dumas tão ilustes e aplicadas alunas. Vale a pena dedicar-se ao 'portugues'tem uma historia que retrata bem uma época dificil,vivida por muitos.Podia até "saltar"da pagina de um livro de Miguel Torga,tão bem ilustra a vivencia da época e a torna numa leitura muito agradavel.Parabens pela luta e merecida vitoria.O exemplo de vida e o bonito texto,tudo torna o vosso trabalho apetecido.
    Obrigada e bem haja.
    avoluisa.

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  3. Para o bem e para o mal, a vida mudou muitos desde os tempos que descreve da sua infância e juventude. Infelizmente a minha geração (1969) não sabe o que isso é. Obviamente devíamos ler Miguel Torga. Tomámos tudo por garantido e com tantas tecnologias esquecemo-nos da arte da língua Portuguesa. Parabén à cidadã Alexandrina e a este blogue que mostra que para aprender basta vontade e boa literatura.

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  4. É gratificante ver uma "jovem" engenheira química, tão distante dos campos desta "Gente Gira", apelar à leitura de Torga, lembrada ainda da "arte da língua portuguesa", invocando a "boa literarura".
    Isto significa, bloguers, que as novas tecnologias ainda não "tomaram" tudo. Que, convivendo com elas e utilizando-as, somos ainda seres pensantes, vivendo emoções e sentimentos, agarrados à Vida, desejosos de partilhar com os outros.
    José Auzendo

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  5. Olá Alexandrina tem uma história de vida bastante interessante. Infelizmente há muitas histórias de vida semelhante à sua. Devemos ser persistentes naquilo que acreditamos porque nunca é tarde demais para aprender.
    Partilho da mesma opinião, da nossa colega dona Lourdes sinto-me feliz de ser sua colega nas aulas de português, sociologia e história.
    Bom carnaval e até breve
    Beijinhos
    Mariana

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  6. Corrigindo...

    ou expressando o que me parece ser de destacar, felizmente que há muitas histórias de vida semelhantes à da D. Alexandrina. Valeu para ela, vale para muitos de nós: nunca foi, nunca é tarde para aprender.Nem mesmo para começar!...

    José Auzendo

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  7. Ao ler o texto da D. Alexandrina, no ponto em que ela diz que Vindima, de Torga, lhe traz à ideia “as vindimas nas vinhas que os seus pais traziam de aluguer”, os almoços de sardinhas assadas comidas em cima do pão, veio-me à ideia uma outra mulher do Sobral, de que tinha lido algo, não me lembrei onde. Demorou a descobrir. Era uma mulher que vivia”num quinteiro perto” da Igreja de Santo Quintino, “voz do sincero amor das coisas … que em cada palavra dita ressumbra um quase dolorido enternecimento, aquele que liga os seres humanos à … indiferença dos objectos inertes…”

    Quem assim fala é, só podia ser, José Saramago, em Viagem a Portugal, ao descrever a sua entrada naquela Igreja, no meio de uma descrição enternecedora da região, “…esta beleza calma da paisagem, terra de agricultores, muita vinha, pomar, horticultura (…). A paisagem é feminina, macia como um corpo deitado, e tépida neste dia de Abril, florida nas bermas da estrada,…”

    E continua o autor com muitos outros mimos assim, sobre as gentes, sobre a paisagem, sobre a Igreja e a sua “cara de três narizes, (…) o seu baptistério…tão íntimo”… Não vou continuar a transcrever, convido os leitores a procurarem em José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 18ª edição, pág. 252 a 256. Há belas edições com fotografias, não é o caso da que cito.

    Reler agora isto, sobre a terra onde vivo, foi, também para mim, como foi para a Dona Alexandrina, uma alegria difícil de transmitir.

    Inês Bexiga

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  8. Escrevi, no meu comentário de ontem que infelizmente há muitas histórias de vida como a de Maria Alexandrina, porque a minha história de vida, por exemplo, é idêntica ou ainda pior. Fui obrigada a sair da escola quando fiz a terceira classe porque, como era rapariga, não precisava de saber mais!...Quando fiz a quarta classe tinha mais de quarenta anos, e o sexto ano fi-lo quando tinha cinquenta e cinco.

    Na quarta classe não aprendi quase nada, pois a pessoa que ensinava não era professora e também não podia fazer muito mais porque a maioria dos alunos era analfabeta. No quinto e sexto anos tive professores muito bons, menos o de Português, que era também de História: faltava muito às aulas e, quando aparecia, ensinava apenas História. Estas são algumas das razões para eu escrever mal; mas eu sou persistente e gosto de aprender. Estou muito feliz com todas as minhas aulas e gosto muito de escrever.Mariana

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  9. Mantendo o “corrigindo” acima, do dia 16….

    Direi que, felizmente, há muitas histórias de vida como as das D. Alexandrina e Mariana.

    Refiro-me, obviamente, como também se dirá em texto a publicar em breve, às vidas vitoriosas das pessoas lutadoras que elas são: felizmente que há muitas histórias destas.

    Não me refiro, obviamente, às dificuldades, às incompreensões que elas, elas e muitas outras pessoas por esse País fora, tiveram de enfrentar para serem o que são hoje.

    Refiro-me, obviamente, ao exemplo que nos dão, à coragem de nos darem o seu testemunho na primeira pessoa e de cara destapada, destapada e levantada, prova segura de que ultrapassaram, sem os esquecerem nem camuflarem, os contratempos que a vida, por vezes madrasta, lhes pôs injustificadamente no caminho.

    José Auzendo

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  10. Sábias palavras e mais sábia é quem as escreveu,quero lhe dar os parabéns pela juventude que continua a ter e pelas palavras faladas e escritas que ao longo de vários anos mos presenteou.Já agora vai um agradecimento publico por tudo o que me ensinou, por tudo o que me ajudou ao longo dos nossos anos de trabalho juntas.E como dissse Fernando Pessoa " querer é poder" e esta fraze identifica bem a sua pessoa.

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