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terça-feira, 28 de maio de 2013

Falar português…(de novo)


Este apontamento que a Alexandrina acaba de publicar transportou-me às deliciosas páginas de “Torna Viagem”, um dos livros de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense  falecido em 1983.
Tive o privilégio de ter o Dr. Horácio Bento como professor de Português no Liceu de Jaime Moniz, no Funchal, tinha ele já uns respeitáveis 67 anos. Com ele aprendi que as palavras têm cor, som, sabor, movimento, vida, que "versejar" não era poesia. Era uma figura ímpar, corpo franzino amarrecado, andar sempre apressado, sorriso afável e contagiante, fato escuro, mão no bolso das calças, dizíamos que andava sempre a “jogar bilhar”. Quando o tema era literatura, de meã estatura o corpo adquiria gigantesca proporção,  os olhos brilhavam, a alma transbordava do invólucro.
Torna Viagem” é um romance à volta da emigração, realidade cruel na altura e de novo temática pertinente.
Horácio Bento amava a sua terra, suas gentes. Só alguém que se identificasse com o Povo poderia captar com tanta beleza o seu falar, sua forma genuína de se exprimir.
A minha sugestão é que faça um exercício lúdico, leia estas passagens em voz alta. Sou madeirense mas lembro-me que tive certa dificuldade de percepção quando li. Depois, a sonorização das palavras levaram-me a sorrir, a identificar  tão intensa forma de falar como é a do madeirense do interior.
- O meu ofício rende poucochinho. Faço ũas botas de cordovão e o que me fica despois de pagar o material nã dá pra cumprar ũas calças!
-Mê filho, nacemos povres mas ainda tu podes vie a sê rico. Ei leises do mundo são ei de Deus e não ei dos homes.
-Mas a sorte ia pra quem ia! Não ia pra mim.
-Cá nada. Olha, os Adrianos, nã tinho senão o caminho da serra. Tanto trabalharo q'hoje são ricações.
-Eu inda sua novo. Um dia hei-de imbarcar. Lá fora ganha-se munto.
-É verdade. S'un dia nui deixares...Vai-me custá munto e a tê pai, mais experimenta a sorte.
-Quando sará? Eu também gosto de viver aqui. Gosto dui vezinhos. Aqui na Achada quero bem a todos e todos gosto de mim. E a mãe já viu q'a filha da madrinha, a Maria Clara, tá ũa rapariga bonita e, há dois anos p'ra cá, pela Semana Santa, vem sempre pedir-me p'ra jogar com ela o “belamento”. Cando a vejo fico mesmo passado!”
...


 “O senhô vai p'ra longe?
- Atia o Faial
- Eu também vua p'ra essa banda!
E, conversando, não sentiam a agrura do caminho e comprido das subidas e descidas.
- Aqui no Norte nã se ganha cuma no Sul, na cidade. Vive-se numa ilha pequena. Os ganhos p'ra quem não tem grandes fazendas só chega p'ra comer o que a terra dá e p'ra não se andar nus.
-É verdade. Vê o senhor esta saia? - e erguendo a roda do vestido o Artur viu a brancura das pernas.
Compreendendo o olhar malicioso, exclamou:- estas já fizero perder a cabeça a mai dum home.
-Benza-as Deus!
-Mas cuma dezia ao senhor, a minha saia inda a devo ao vendilhão. Muntas as despesas! Sua eu em casa p'ra tudo, sabe o senhor!”


Aqui ou lá há um património que nunca há-de estar em consonância com convenientes acordos duvidosos da língua, e ainda bem! 
Tal como no texto da Alexandrina este é um tributo à identidade de um povo.
Ao ter  conhecido de perto o professor escritor, "Ti Bento"  como carinhosamente era conhecido entre a estudantada da época,  quase que ao ler lhe ouço a voz, visualizo o gozo ao transpor para o papel as ideias, a sonoridade dos adjectivos, a intencionalidade maliciosa, a  dança das palavras!


Afonso Faria

9 comentários:

  1. Este texto do Afonso (desculpem, do professor Afonso) é o primeiro filho do texto da Alexandrina. O segundo, bastardo, já degenerado, está na incubadora à espera que o tempo lhe permita sair da casca. Minhoto que sou, também eu gostava de trazer aqui um cheirinho do dialecto da minha terra. Mas não, não tenho para isso a arte de que há dias falei.

    Nunca estive na Madeira mas sempre soube que não é fácil para nós (cubanos?) entendermos a fala madeirense. E este excerto do livro de juventude do Afonso bem o demonstra. E ao trazê-lo aqui, o Afonso mostra que as ideias, como as palavras, podem ser como as cerejas: preciso é que se pegue numa para outras virem atrás. E levar-nos, elas, as ideias, por esse mundo fora sem nos levantarmos do sofá.

    Dialecto sobralense, madeirense e, na falta do minhoto …

    Estive nos Açores e tive muita dificuldade em entender certos falares açorianos. E, recentemente, li um livro do são micaelense Cristóvão de Aguiar, Raiz Comovida, de que vou transcrever, colando, uns excertos saborosíssimos. “(…) principiou intances a procura do Ti Rosado; acenderam-se lanternas de charabãs, massame de povo num laricá dos demónios (…) espiolharam o quintal, meteram-se por canadas, caminhos e caneiros, chegaram inté a ir ao cerrado do Lombo do Cavalo; (…) depois do serviço feito, pode o meu senhor lavar-se nesta selhinha (…) e emborcar primeiro este calzins de cachaça, mas, meu rico senhor, só lhe peço que me emprenhe o raio da gueixinha … “

    Auzendo

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  2. Este tema do Falar Português, bem como os seus comentários, dá pano para mangas e vontade de ficar por aqui a trocar ideias sem parar.
    Primeiro senti também a mesma afinidade por ainda me lembrar tão bem dos meus professores de Português e Língua Portuguesa, de me ser tão fácil recordar as suas vozes durante a leitura e das suas expressões. Sr. Afonso, muito obrigada pelo seu texto, fez-me ainda recordar um colega de faculdade oriundo da Madeira que me punha de cabelos em pé por não conseguir perceber quase nada do que ele dizia, e acabava por ter de repetir mais devagar, depois de terinada a gargalhada geral, está claro!
    Cumprimentos,
    Hortense Bogalho

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  3. Este é mais um texto que nos vem demonstrar como é o nosso património cultural.
    Concordo plenamente com o professor Afonso quando afirma "Aqui ou lá há um património que nunca há-de estar em consonância com convenientes acordos duvidosos da língua, e ainda bem!". Mas para isso, é preciso que não se deixe morrer e se continue a propagar pelas gerações mais recentes a riqueza deste nosso património linguístico.
    Obrigada Professor pelas gargalhaas que me "proporcionou".
    Um abraço
    Lourdes.

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  4. Os meus parabéns à colega Alexandrina, e ao professor Afonso pelos textos tão engraçados e tão verdadeiros. Era assim que se falava na minha aldeia, Quando fui para Lisboa aprender a minha profissão, a minha mestra gozava comigo por eu dizer a nha mãe e mê pai, quando tinha sede ia buer auga, ia apanhar a camineta da carrera a nha mãe tava lá a nha espera.Foi assim que aprendi a falar, por que era assim que o meu querido falava, nem queria falar doutra maneira .
    Um beijinho para o professor Afonso outro para a colega Alexandrina
    Mariana luis

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  5. Este texto do professor Faria saiu num dia em que estou particularmente feliz: Mia Couto, com a sua grande capacidade de criar e inovar a língua que fala e escreve, numa simbiose perfeita do falar moçambicano com a língua de Camões e do Padre António Vieira, acaba de ganhar o Prémio Camões 2013.

    Faz algum tempo, dizia ele numa entrevista:
    “Só quando quis contar histórias é que se me colocou este desafio de deixar entrar a vida e a maneira como o português era remoldado em Moçambique, para lhe dar maior força poética. A oralidade não é só aquela coisa que se resolve mandando por aí umas brigadas a recolher histórias tradicionais, é muito mais que isso”. E acrescentou: “Temos sempre a ideia de que a língua é a grande dama, tem que se falar e escrever bem. A criação poética nasce do erro, da desobediência.”

    Por ironia do destino ou, em “alentejano”, “artemage” (feitiçaria), neste blogue resolveram escrever sobre dialectos, parecendo até “adevinhação”; e eu “arrabolei-me” duplamente de contente. Afinal, para “amanhári as letras”, parecendo que está tudo “às vessas”, é preciso seguir a máxima do professor Faria: só alguém que se identifique com o Povo pode captar com tanta beleza o seu falar, sua forma genuína de se exprimir

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  6. Acabo de aceder a este novo artigo deste cantinho de partilha e amizade e logo encontro razão para tomar assento no grupo que não deixa de se entusiasmar e viver com o que se vai passando neste blog. Não quero deixar de agradecer a todos os que vão partilhando e enriquecendo este espaço com a sua disponibilidade e vontade de alimentar e acarinhar uma amizade, que como costuma dizer-se quando o veículo é a "rede", virtual é tão estimulante e viva. Mas a razão fundamental para voltar a "teclar" é o facto de ,sem saber explicar-vos, ter tido sempre a sensação que a maior riqueza deste País e as suas verdadeiras fronteiras (se é que fronteiras são algo de respeitável?!)era essa língua portuguesa que em vários lugares dom mundo onde tive o privilégio de estar sempre me permitiram sentir-me acompanhado. Mais, constatei que a esta nossa língua que alguns agora querem "uniformizar", ao serviço de interesses de que permito ter dúvidas sobre a sua bondade, foi sempre tão forte insubmissa e dinâmica que foi adaptada, mas respeitada, nas várias comunidades que constituem a verdadeira "Diáspora Portuguesa". Conheço, até por motivos profissionais, o meu País e também muitas comunidades portuguesas que se radicaram noutros continentes, conheço também muitos dos países onde a língua portuguesa é o idioma de referência, e posso confessar-vos como é boa a sensação de poder falar a nossa língua em lugares, às vezes, tão distantes. Mais, para mim, era uma verdadeira vaidade ver como o português não perdia todo o seu encanto, e até muitas vezes acrescentava algo de fascinante quando era mesclado pelas características típicas de um madeirense, açoriano, alentejano, brasileiro ou africano. Sim, afinal a Língua Portuguesa é tão universal e abrangente como desejamos seja o coração do Homem. Portanto deixem em paz esta língua que até bebeu, na sua génese, na melhor escola cultural (escola latina) que o mundo jamais conheceu!

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  7. Um dia o professor Auzendo, ao responder-me a um mail que lhe tinha enviado, usou algumas palavras em dialecto; por graça, respondi-lhe com o meu linguajar sobralense. E como o professor é uma pessoa atenta, foi logo categórico: “ É obrigatório que escreva qualquer coisa de imediato nesse dialecto”.

    Perante este pedido tão peremptório, decidi escrever o meu texto… na ideia de que seria mais um a que ninguém ia dar importância. Como em muita coisa na minha vida…enganei-me redondamente: não só houve comentários favoráveis, como o Professor Afonso nos delicia com um novo texto, desta vez do linguajar da Madeira. Li o texto em voz alta como o Professor Afonso alvitrou, mas faltou-me a “arte” de imitar o sotaque madeirense, que é uma autêntica preciosidade.
    Se sou a mãe do texto. Quem será o pai? O filho primogénito é um encanto, agora aguardo o “bastardinho”, que além de bastardo parece que vai degenerar…o que é pena.
    Maria Alexandrina

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  8. Entendo que não devo deixar a Alexandrina “insultar” um só que seja dos dialectos portugueses. É que eu não escrevi esse mail em dialecto coisa nenhuma, aliás já disse que não sei dialecto algum. Aconteceu foi que … para acabar com uma “discussão” epistolar que já me desagradava, eu escrevi-lhe: “Sassinhé ... muitóbrigado, o velhótagradece...E atão atémanhã...Logo dou notícias ducouver”. Ou seja, escrevi conforme o “novíssimo” acordo ortográfico (só meu, ouviu Manuel Augusto?) que manda escrever tal qual se fala hoje…E, então sim, a Alexandrina respondeu-me em dialecto sobralense … e o resto já se sabe…

    Auzendo

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  9. Parabêns Sr. Afonso por este seu delicioso texto, que nos dá a conhecer o dialeto duma região tão linda como é a Madeira. Já por lá passei, e em certas zonas lembro-me que, quase era preciso tradutor para percebermos o que diziam. "Tamém gostei da estoira da Alexandrina, acho ca té tá manta bum". conheci pessoas que falavam assim, e não era por falta de habilitações literárias, mas por ser a identidade do povo daquela região. Conheço uma Senhora, tambem ela Madeirense tal como o autor deste mágnifico texto, a viver no Continente à mais de quatro décadas, e quando ela quer, é muito engraçado ouvi-la falar. Pessoalmente gosto muito de sotaques e dialectos, direi mesmo,acho uma doçura. Tambem gosto muito da zona da "sarredinha e do carrapau".
    Rosa Santos

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