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terça-feira, 26 de março de 2013

RECORDAÇÕES DE INFÂNCIA (Crónicas)


O CICLISTA

Nasceu de uma extensa família, de origem bastante humilde, sendo o mais novo de muitos irmãos, onde predominavam as raparigas, algumas com filhos quase da sua idade.
Ficou órfão de pai muito novo, mas por ser o mais novo dos irmãos, foi sempre bastante protegido, designadamente pelas irmãs, que cedo rumaram a Lisboa para trabalhar, onde apesar de pobres, dispunham de outros meios. A ajuda das irmãs possibilitavam-lhe uma vida um pouco mais desafogada, designadamente enquanto viveu com sua mãe, melhor do que a proporcionada pelos magros proventos obtidos na sua condição de trabalhador rural “jornaleiro”.
Homem bem-humorado, tinha sempre uma piada na ponta da língua, apesar das muitas dificuldades de uma vida de trabalhador assalariado. Casou já na casa dos 30 anos, criou seis filhos, numa época de muitas carências. A sua ocupação profissional foi diversificada, pois para além de trabalhador rural, trabalhou nas “obras”, foi também pastor e “tosquiador de ovelhas”, ocupações que nunca lhe trouxeram qualquer abundância material. O grande afecto pela sua companheira de sempre era comentado como exemplo na aldeia, nunca se notou na vida do casal quaisquer desentendimentos, quando as dificuldades materiais eram muitas e quando sobrava para as mulheres a parte mais amarga da vida familiar de então.
Privou de muito perto com o autor destas linhas, era seu tio por afinidade e havia entre ambos uma grande empatia.
Era um apaixonado pelo ciclismo, modalidade que praticou quando jovem, conheceu muito bem, ao longo dos tempos, os ciclistas de maior renome, tinha os seus ídolos, no tempo em que o ciclismo era praticado por equipas de clube, onde a sua cor clubista exercia uma evidente influência.
Estava sempre disponível para acompanhar as muitas provas que se realizavam na região, onde o ciclismo era a modalidade rainha e de onde eram originários muitos praticantes, entre os quais alguns dos melhores atletas, que ao longo dos anos despertaram para esta prática desportiva.
Discutia e comentava o comportamento de cada ciclista, conhecia as tácticas aplicadas e aproveitava para repetir as suas muitas histórias de quando praticante, que apesar de repetidas, eram sempre ouvidas com muito agrado, tal o entusiasmo e o humor com que as contava.
Recordava com pormenor e entusiasmo a sua participação na 3ª Volta a Portugal em Bicicleta, no longínquo ano de 1932, quando pequeno grupo de ciclistas do concelho de Sobral de Monte Agraço se juntou, com o apoio alguns dos seus conterrâneos, designadamente do médico da terra e lá partiram à aventura. No caso do nosso ciclista o apoio de alguns familiares, em particular dos seus sobrinhos que viviam em Lisboa, foi determinante.

Com as cores do Monte Agraço como fazia questão de sublinhar, partiram da Cova da Piedade, rumo ao Sul, integrados num pelotão de 56 ciclistas, para percorrer todo o País, numa distância de mais de 2.500 Km. Por estradas de terra batida, onde as nuvens de pó dificultavam ainda mais a vida aos ciclistas, que a própria dureza dos percursos. Não esquecia o facto de terem concluído uma etapa em Espanha, com chegada à cidade de Vigo, a primeira vez que a Volta a Portugal em Bicicleta entrou no País vizinho.
Reconhecia não ser o melhor ciclista do seu grupo, mas foi o único que concluiu a prova e dizia com orgulho que não foi o último classificado, pois atrás dele ainda se classificou o Matos.
Das várias histórias relacionadas com a “volta” contava que na etapa que terminou em Setúbal, onde a chegada se fazia após várias voltas à Avenida Luísa Todi, depois de uma grande confusão, pois não se sabia quantas voltas tinham dado cada um dos ciclistas, ao levantarem-lhe a bandeira de xadrez, logo “encostou”, sendo nesse dia classificado como o primeiro dos “fracos”. Os ciclistas eram divididos pelas categorias de “fortes”, “militares” e “fracos”. Nunca chegou a saber se terá sido naquele dia o primeiro dos “fracos”, ele próprio tinha muitas dúvidas.
Resta acrescentar que a 3ª Volta a Portugal em Bicicleta foi ganha por Alfredo Trindade, o seu grande ídolo e que representava o clube do seu coração.
Por vezes lhe perguntamos – Tio João Silvestre… quem era melhor, o Trindade ou o Nicolau? Os grandes ciclistas do seu tempo. Ao que ele respondia… não te sei dizer - eles eram os dois tão bons…
Se estivesse hoje connosco, imagino qual seria a sua alegria ao poder acompanhar a carreira do seu bisneto, o jovem ciclista Fábio Silvestre.


Eduardo João

3 comentários:

  1. Caro Senhor Eduardo João
    Mais uma das histórias do seu Baú de Memórias.
    Obrigada por partilhá-la aqui neste espaço, pois há sempre quem aprecie e goste de saber algo do passado contado por testemunhos das próprias vivências. São histórias de vida que muitas vezes nos mostram que vale sempre a pena sonhar. E esses nossos sonhos muitas vezes passam nos genes dos descendentes que mais tarde os concretizarão por nós, tal como o Fábio Silvestre herdou o gosto do bisavô.
    Oxalá o Fábio Silvestre continue a concretizar sempre com êxito o sonho do seu bisavô!
    Lourdes Henriques.

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  2. Esta história fez-me recuar à minha adolescência/juventude, em que eu era "um doido" por andar de bicicleta; claro que sempre tive só uma "pedaleira" e velha...Recordou-me a, também já velha no meu tempo, rivalidade Nicolau/Trindade; e levou-me a este poema de Alexandre O'Neil, chamado precisamente, "O Ciclista". É assim:

    O homem que pedala, que ped'alma
    com o passado a tiracolo,
    ao ar vivaz abre as narinas :
    tem o por vir na pedaleira.

    Mas o "verso" que mais me diz, revivendo a minha tal adolescência, é esta quadra do poema "A minha bicicleta", de Miguel Bernardes:

    A minha bicicleta
    só tem dois pedais;
    mas se monto nela
    não tem dois, tem mais !

    Auzendo

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  3. Amigo Dr. Eduardo João, lendo o que escreve sobre o seu tio, que tão bem conheci, imagino o prazer que sentiu enquanto relatou esta sua história. É sempre bom recordar os nossos familiares que partiram e nos deixaram tão boas recordações; por isso é salutar contar as peripécias das suas vidas, para que outros tenham conhecimento da sua existência, dos seus sonhos e da forma que estiveram na vida ... que era dura e pobre.

    O Senhor João Silvestre teve um sonho, lutou por ele e fez o que pôde; o Fábio tem um sonho, como o bisavô, e está a concretizá-lo com êxito. Que continue alcançando vitórias e que o futuro lhe seja risonho, e que não esqueça o seu bisavô de quem herdou o gosto pelo ciclismo..

    Maria Alexandrina

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