Chamo-me
José Vieira e nasci em 30 de Junho de 1918; fiz, portanto, 94 anos.
Nasci em Mouguelas, e vim viver mesmo para a vila do Sobral aos sete
anos de idade. Julgo ser, neste momento, a segunda pessoa mais velha
do Sobral, a seguir ao meu cunhado, Frederico Tavares, uns meses mais
velho que eu. Tenho falta de vista, vejo pouco, já não consigo ler
nem escrever, mas ando, ouço e falo bem, tenho ainda boa memória de
tudo o que vivi.
Comecei
o ensino primário no Sobral, mas pouco depois fui para a escola de
Almargem, pois na Vila deixou de haver professor. A pé, do Sobral
para Almargem, chovesse ou fizesse sol. E pouco se aprendia, porque o
professor gostava era de andar a cavalo na égua do Moreira e
ensinar… nada. Acabei por desistir e, depois, fui tendo aulas em
diversos sítios, até estudei com a regente mestra Xavier, em casa
dela, sentado num banco: aprender também não se aprendia nada… E
assim andei sete anos, aqui e ali a fazer que estudava, para concluir
a terceira classe. Acabei a escola com 14 anos feitos.
Nos
intervalos sem aulas, que eram maiores que os períodos de aulas, ia
trabalhando, primeiro com o meu irmão a acartar água do chafariz ou
das duas bombas da Vila para o depósito da casa de pasto que a minha
mãe tinha. Todos os dias tínhamos que encher o depósito. Depois,
aí a partir dos 10 anos, a ir a Torres ou ao comboio a Dois Portos,
com uma mula, buscar peixe para vender no Mercado do Sobral. O meu
pai amanhava uma propriedade muito grande, chamada Cardeiras, em
Mouguelas, e eu também trabalhava na propriedade, inclusive a fazer
o vinho que era trazido para o Sobral: lembro-me de passar horas a
encher as dornas de uvas à mão, para depois serem pisadas…
Fui
depois aprender o ofício de barbeiro, na barbearia do meu cunhado, a
barbearia Serreira, na Praça do Sobral. E assim andei até ir para a
tropa. Como eu detestava ser barbeiro, pensei que ia para a tropa
para me livrar da profissão, mas até pareceu castigo porque na
tropa também me puseram a barbeiro, no Regimento de Metralhadoras 1,
em Lisboa, na Marquês da Fronteira, onde agora é o Palácio da
Justiça. Estávamos em 1939. Estive na tropa 11 meses. Nasci meses
depois da eleição de Sidónio Pais como Presidente da República e
seis meses antes do seu assassínio, em 14 de Dezembro de 1918.
Muitas revoltas aconteceram depois, incluindo a de 28 de Maio de 1926, e a tomada do poder por Salazar, mas nada disso teve influência
directa no meu dia a dia; aparentemente, que eu me lembre, esses
acontecimentos não eram falados no Sobral. Falávamos mais na bola.
Mas
lembro-me muito bem das dificuldades em que vivemos durante as
guerras, a começar na guerra civil de Espanha e depois com a 2ª Grande Guerra: as senhas de racionamento que tínhamos de ir buscar
para comprar quase tudo, sabão, pão, arroz, açúcar, bacalhau...
Para a carne não havia senhas, mas tinha que se ir para a bicha do
talho por volta da meia-noite e, muitas vezes, às 9 da manhã
vinha-se embora sem carne, porque ela acabava. E havia a candonga,
tanta candonga…
Quando
saí da tropa, o meu pai alugou uma loja na Praça e eu continuei aí
a profissão de barbeiro: foi a minha profissão toda a vida, até me
reformar. Nessa altura, havia três barbearias na Praça e outra mais
à frente, na Rua Marquês de Pombal. Casei aos 21 anos de idade com
a filha de um padeiro e pasteleiro e tive um filho, que já morreu há
anos. Ainda explorámos um café, em frente aos Bombeiros de então,
na Rua Miguel Bombarda, onde passámos a viver. A minha mulher morreu
cedo, de cancro na cabeça. Era a mulher mais alegre da rua, sempre
bem-disposta. O meu pai também morreu tinha eu 30 e poucos anos,
atropelado por um graduado da Mocidade Portuguesa... Ainda tentou
fugir, caçaram-no mas, como era quem era, da situação, no
julgamento foi apenas condenado a pagar uma pequena indemnização.
Estávamos na década de 50 do século XX. Não tive netos. Além meu
cunhado, tenho dois sobrinhos vivos: é esta a minha família actual.
Vivo num lar, no Sobral, desde há quatro anos.
José
Vieira