VISITANTES

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Em viagem pela vida...(2)


Mas voltando de novo atrás, quando vim para Portugal, senti-me desolada, triste e desterrada. O liceu para onde fui estudar era horrível, eu parecia um bichinho do mato (alcunha que me foi atribuída por algumas colegas – vim a sabê-lo mais tarde). Vinha duma realidade tão diferente: liceu misto, amplo, liberdade relativa (o suficiente para me sentir feliz), território pequeno que de bicicleta dava a volta em uma hora. Ao chegar cá deparei-me com um liceu que mais parecia as paredes de uma prisão, só raparigas, professoras austeras nada parecidas com os meus professores de Macau, e aí começou a tristeza a apoderar-se de mim. Os meus pais não se entendiam e as brigas eram constantes. Enquanto que em Macau tinha convívio com as amigas, ia para o Colégio de freiras aprender a tocar piano, tinha todas as semanas um professor que ia a casa ensinar-me a tocar acordeon, participava no Orfeão do Liceu e em todas as festas que lá se faziam e bem assim nas da Igreja, cá foi o oposto. Tirando o trajecto de casa para o liceu que durava quase duas horas de manhã e outras duas à tarde, não tinha qualquer outra distracção. Meu pai nem sequer me deixava participar nas festas do liceu pois temia que eu quisesse seguir uma carreira artística. E a agravar tudo isto, o entendimento de meus pais estava cada vez mais degradado, com o feitio de minha mãe muito autoritária e meu pai a entregar-se ao alcoolismo. Comecei então a escrever uns versos que escondia, pois não queria que meus pais os descobrissem. Sentia-me triste, só e deprimida. Ainda por cima, quando cá cheguei, minha avó materna, a única que conheci, veio viver connosco, tendo apenas sobrevivido 6 meses à nossa chegada. Como me adorava coitadinha! Parece que estou a vê-la: quando viu pela 1ª. vez o jovem que mais tarde viria a ser meu marido, olhou muito para ele, e depois dele sair, como que num vaticínio, disse-me assim: Mariazinha (era como ela me chamava), ele tem uns lindos olhos e vai ser teu. Eu achava que a minha avó não estaria no seu juízo perfeito, mas o destino troca-nos as voltas e cá estou eu casada com ele há 45 anos.
Após ter terminado o curso geral dos liceus (antigo 5º. Ano), meus pais queriam que eu fosse estudar para ser professora, e aí foi o grande desgosto que dei a meu pai, pois não sentia vocação para tal. Acho que não devemos ingressar numa profissão sem termos um mínimo de queda. E eu, não me estava a ver ser uma boa professora. E empreguei-me como empregada de escritório onde permaneci quase 40 anos, em Alfama, na minha querida terra natal. Gostei muito do meu trabalho, mas sempre senti a falta de qualquer coisa que só muito tarde percebi o que era: ser cantora. Tarde demais. E pesa-me na alma a falta de consideração com que saí do emprego onde permaneci 40 anos, tendo-me dedicado de corpo e alma, gostando imenso do que fazia, sem sacrifício e toda a dedicação.
Mas a vida é assim, levamos pontapés a torto e a direito mas temos que aprender a viver com eles...

Lourdes Henriques (Sobral - Biblioteca)

terça-feira, 19 de julho de 2011

Em viagem pela vida...(1)


Sou natural de Lisboa, onde nasci a 25 de Outubro de 1945. Apesar de ter nascido como se estivesse morta e só depois de alguns açoites de cabeça para baixo tivesse começado a reagir à chegada a este mundo, eis-me aqui com 65 anos bem completos, a escrever um pouco sobre mim.
Quando tinha seis anos fui viver para Macau, território onde permaneci durante 8 anos. Fui no paquete Timor, atravessei o canal de Suez, Mediterrâneo, estive na Índia, Manila, Singapura, Porto Said, até que após 56 dias de viagem no Alto Mar, chegámos a Hong Kong. Daí, fomos num navio local que levou 4 horas a transportar-nos até Macau. A primeira casa que habitei situava-se na rua onde existia, e ainda existe, segundo me consta, o Palácio de Sun Yat Sen, antigo imperador da China, tendo presenciado pessoalmente todas as imponentes cerimónias fúnebres do seu funeral. Durante o primeiro ano de permanência em Macau, mudei de casa duas vezes, sendo que na última permaneci os restantes sete anos que lá estive. Era num bairro típico chinês e apesar de viver quase exclusivamente entre chineses, tenho muitas saudades desse tempo. E foi nesse bairro que ao fim de um ano de permanência em Macau eu tive uma irmã, mais nova do que eu sete anos e meio.
Lá fiz os antigos estudos da instrução primária e estudei até ao 3º. ano do liceu. Apesar de ter uma vida humilde, pois o meu pai era 2º. Sargento do exército, nunca me faltou nada essencial para viver e meus pais faziam questão de me proporcionar tudo o que os meninos ricos podiam ter. A par dos estudos, tive formação religiosa, aprendizagem de piano e acordeon. Sempre tive vocação para as artes e talvez por isso (só hoje o entendo) meu pai vivia em permanente agitação dizendo-me que não queria que eu fosse artista. E eu sem perceber nada, pois nunca pedi a ninguém para seguir tal carreira. Mas ele, com a sua grande sensibilidade, apercebeu-se muito cedo da minha verdadeira vocação. Eu própria achava muito estranho todas as minhas amigas quererem ser isto ou aquilo, e eu nunca sabia o que queria ser. Apenas dizia que os meus pais queriam que eu fosse professora, ilusão que eu lhes fui alimentando até à hora H. Mas voltando atrás, após 8 anos de permanência nesse misterioso e querido Oriente, voltei para Portugal quase a fazer os meus quinze anos, e aí, o meu destino foi traçado. Embarquei no paquete Niassa, em Hong Kong, que levou 50 dias a transportar-nos até Portugal. A rota foi outra. Até à Índia, foi igual, mas depois viemos pela costa de África. Visitei algumas localidades de Moçambique e adorei Lourenço Marques. Dobrei o Cabo da Boa Esperança, tendo tido curiosidade em ver o Gigante Adamastor de que tanto se falava nas escolas. E vi o tal penedo que, na realidade, para a época dos descobrimentos marítimos, deveria ter sido medonho. Parece mesmo um gigante deitado. Depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança, com o navio em grande agitação motivada por um vendaval, o navio rumou a Luanda, última paragem do nosso longo percurso antes de chegar ao seu destino: Lisboa. Gostei muito de Luanda, mas não mais do que Lourenço Marques, que me ficou no coração.
Mas voltando um pouco atrás, quando entrei no Niassa, disse há pouco que o meu destino foi traçado. É que, gostando de música como eu gostava, adorando o acordeon, dei de caras com uma orquestra. Nem queria acreditar. Ver músicos ao vivo, era um sonho que eu estava a viver sem nunca o ter imaginado. Com a agravante que tinha um jovem como acordeonista, cuja primeira impressão me fez pressentir que iria ser alguém muito importante na minha via. Eu, uma miúda que nem quinze anos completos tinha, e ele, um homem feito, com vinte e sete anos, embora com aparência de muitíssimo mais novo. Bonito, sedutor e artista. Escusado será dizer que um músico a bordo, ainda por cima com todos estes predicados, não iria olhar para uma garota. Ficámos amigos pois ele achava-me graça por eu tocar acordeon. De vez enquanto visitava-nos quando vinha de viagem e as famílias chegaram a ter algum convívio mas eu não podia nem queria alimentar esperanças vãs, pois soube algum tempo depois que estaria para casar. Mas o destino é irónico, e quando eu já tinha perto de dezanove anos, voltamos a encontrar-nos. Eu que o julgava já casado, estava livre e sem compromisso. A menina já tinha crescido e era então uma mulher bastante engraçada, e o meu pressentimento tornou-se real. Um ano e tal depois casámo-nos. Eu com vinte anos e ele com trinta e dois anos. Eu que dizia que NUNCA me casaria com um homem mais velho do que eu mais do que cinco anos! Nunca digas NUNCA.

Lourdes Henriques (Sobral - Biblioteca)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

REVOLTA


Revolta, revolta é tudo o que sinto.
Às vezes questiono-me: O que é o ser humano? O que é o planeta Terra?
Uma bola composta por terra, rocha e água, cercada por uma atmosfera poluída pelos seres que se dizem “inteligentes” e superiores a todos os que nela habitam. Uma bola pronta a explodir de um momento para o outro, se o seu interior de fogo resolver começar a cuspir cá para fora, pelas crateras dos vulcões, tudo o que a mais estiver no seu interior. E aí, adeus homens, animais e plantas, adeus “seres inteligentes” que se julgavam acima de todos os poderes da natureza mas que contra ela nada puderam fazer! E depois de as lavas tudo destruírem à sua passagem, sem dó nem piedade, sem olharem a nada, deixando tudo queimado e subterrado à sua volta, a terra vai continuando a girar com todo o seu mistério.
E nos movimentos do seu interior, placas tectónicas a deslocarem-se de um lado para o outro, provocando terramotos, marmotos, tsunames… e muitos anos depois “os inteligentes” descobrem que onde hoje é terra, há muitos milhares de anos já foi mar, e vice-versa.
Afinal que são os “inteligentes” no meio de tudo isto? Ou será que são eles, com as suas descobertas e experiências científicas, astronáuticas, lunáticas, ou lá o que for, que estão a contribuir para que a natureza acelere muitas das suas catástrofes naturais?
Quando penso nisto, gostaria de pertencer a um mundo selvagem. A civilização, com todas as suas descobertas, cada vez vai contribuindo mais para destruir o que de bom nos foi oferecido pela natureza.

Lourdes Henriques (Sobral - Biblioteca)