Mas voltando de novo atrás, quando vim para Portugal, senti-me desolada, triste e desterrada. O liceu para onde fui estudar era horrível, eu parecia um bichinho do mato (alcunha que me foi atribuída por algumas colegas – vim a sabê-lo mais tarde). Vinha duma realidade tão diferente: liceu misto, amplo, liberdade relativa (o suficiente para me sentir feliz), território pequeno que de bicicleta dava a volta em uma hora. Ao chegar cá deparei-me com um liceu que mais parecia as paredes de uma prisão, só raparigas, professoras austeras nada parecidas com os meus professores de Macau, e aí começou a tristeza a apoderar-se de mim. Os meus pais não se entendiam e as brigas eram constantes. Enquanto que em Macau tinha convívio com as amigas, ia para o Colégio de freiras aprender a tocar piano, tinha todas as semanas um professor que ia a casa ensinar-me a tocar acordeon, participava no Orfeão do Liceu e em todas as festas que lá se faziam e bem assim nas da Igreja, cá foi o oposto. Tirando o trajecto de casa para o liceu que durava quase duas horas de manhã e outras duas à tarde, não tinha qualquer outra distracção. Meu pai nem sequer me deixava participar nas festas do liceu pois temia que eu quisesse seguir uma carreira artística. E a agravar tudo isto, o entendimento de meus pais estava cada vez mais degradado, com o feitio de minha mãe muito autoritária e meu pai a entregar-se ao alcoolismo. Comecei então a escrever uns versos que escondia, pois não queria que meus pais os descobrissem. Sentia-me triste, só e deprimida. Ainda por cima, quando cá cheguei, minha avó materna, a única que conheci, veio viver connosco, tendo apenas sobrevivido 6 meses à nossa chegada. Como me adorava coitadinha! Parece que estou a vê-la: quando viu pela 1ª. vez o jovem que mais tarde viria a ser meu marido, olhou muito para ele, e depois dele sair, como que num vaticínio, disse-me assim: Mariazinha (era como ela me chamava), ele tem uns lindos olhos e vai ser teu. Eu achava que a minha avó não estaria no seu juízo perfeito, mas o destino troca-nos as voltas e cá estou eu casada com ele há 45 anos.
Após ter terminado o curso geral dos liceus (antigo 5º. Ano), meus pais queriam que eu fosse estudar para ser professora, e aí foi o grande desgosto que dei a meu pai, pois não sentia vocação para tal. Acho que não devemos ingressar numa profissão sem termos um mínimo de queda. E eu, não me estava a ver ser uma boa professora. E empreguei-me como empregada de escritório onde permaneci quase 40 anos, em Alfama, na minha querida terra natal. Gostei muito do meu trabalho, mas sempre senti a falta de qualquer coisa que só muito tarde percebi o que era: ser cantora. Tarde demais. E pesa-me na alma a falta de consideração com que saí do emprego onde permaneci 40 anos, tendo-me dedicado de corpo e alma, gostando imenso do que fazia, sem sacrifício e toda a dedicação.
Mas a vida é assim, levamos pontapés a torto e a direito mas temos que aprender a viver com eles...
Lourdes Henriques (Sobral - Biblioteca)
Lourdes Henriques (Sobral - Biblioteca)