O CICLISTA
Nasceu
de uma extensa família, de origem bastante humilde, sendo o mais
novo de muitos irmãos, onde predominavam as raparigas, algumas com
filhos quase da sua idade.
Ficou
órfão de pai muito novo, mas por ser o mais novo dos irmãos, foi
sempre bastante protegido, designadamente pelas irmãs, que cedo
rumaram a Lisboa para trabalhar, onde apesar de pobres, dispunham de
outros meios. A ajuda das irmãs possibilitavam-lhe uma vida um pouco
mais desafogada, designadamente enquanto viveu com sua mãe, melhor
do que a proporcionada pelos magros proventos obtidos na sua condição
de trabalhador rural “jornaleiro”.
Homem
bem-humorado, tinha sempre uma piada na ponta da língua, apesar das
muitas dificuldades de uma vida de trabalhador assalariado. Casou já
na casa dos 30 anos, criou seis filhos, numa época de muitas
carências. A sua ocupação profissional foi diversificada, pois
para além de trabalhador rural, trabalhou nas “obras”, foi
também pastor e “tosquiador de ovelhas”, ocupações que nunca
lhe trouxeram qualquer abundância material. O grande afecto pela sua
companheira de sempre era comentado como exemplo na aldeia, nunca se
notou na vida do casal quaisquer desentendimentos, quando as
dificuldades materiais eram muitas e quando sobrava para as mulheres
a parte mais amarga da vida familiar de então.
Privou
de muito perto com o autor destas linhas, era seu tio por afinidade e
havia entre ambos uma grande empatia.
Era
um apaixonado pelo ciclismo, modalidade que praticou quando jovem,
conheceu muito bem, ao longo dos tempos, os ciclistas de maior
renome, tinha os seus ídolos, no tempo em que o ciclismo era
praticado por equipas de clube, onde a sua cor clubista exercia uma
evidente influência.

Discutia
e comentava o comportamento de cada ciclista, conhecia as tácticas
aplicadas e aproveitava para repetir as suas muitas histórias de
quando praticante, que apesar de repetidas, eram sempre ouvidas com
muito agrado, tal o entusiasmo e o humor com que as contava.
Recordava
com pormenor e entusiasmo a sua participação na 3ª Volta a
Portugal em Bicicleta, no longínquo ano de 1932, quando pequeno
grupo de ciclistas do concelho de Sobral de Monte Agraço se juntou,
com o apoio alguns dos seus conterrâneos, designadamente do médico
da terra e lá partiram à aventura. No caso do nosso ciclista o
apoio de alguns familiares, em particular dos seus sobrinhos que
viviam em Lisboa, foi determinante.
Com
as cores do Monte Agraço como fazia questão de sublinhar, partiram
da Cova da Piedade, rumo ao Sul, integrados num pelotão de 56
ciclistas, para percorrer todo o País, numa distância de mais de
2.500 Km. Por estradas de terra batida, onde as nuvens de pó
dificultavam ainda mais a vida aos ciclistas, que a própria dureza
dos percursos. Não esquecia o facto de terem concluído uma etapa em
Espanha, com chegada à cidade de Vigo, a primeira vez que a Volta a
Portugal em Bicicleta entrou no País vizinho.
Reconhecia
não ser o melhor ciclista do seu grupo, mas foi o único que
concluiu a prova e dizia com orgulho que não foi o último
classificado, pois atrás dele ainda se classificou o Matos.
Das
várias histórias relacionadas com a “volta” contava que na
etapa que terminou em Setúbal, onde a chegada se fazia após várias
voltas à Avenida Luísa
Todi, depois de uma grande confusão, pois não se sabia
quantas voltas tinham dado cada um dos ciclistas, ao levantarem-lhe a
bandeira de xadrez, logo “encostou”, sendo nesse dia classificado
como o primeiro dos “fracos”. Os ciclistas eram divididos pelas
categorias de “fortes”, “militares” e “fracos”. Nunca
chegou a saber se terá sido naquele dia o primeiro dos “fracos”,
ele próprio tinha muitas dúvidas.
Resta
acrescentar que a 3ª Volta a Portugal em Bicicleta foi ganha
por Alfredo
Trindade, o seu grande ídolo e que representava o clube
do seu coração.
Por
vezes lhe perguntamos – Tio João Silvestre… quem era melhor, o
Trindade ou o Nicolau?
Os grandes ciclistas do seu tempo. Ao que ele respondia… não te
sei dizer - eles eram os dois tão bons…
Se
estivesse hoje connosco, imagino qual seria a sua alegria ao poder
acompanhar a carreira do seu bisneto, o jovem ciclista Fábio
Silvestre.
Eduardo João
Caro Senhor Eduardo João
ResponderEliminarMais uma das histórias do seu Baú de Memórias.
Obrigada por partilhá-la aqui neste espaço, pois há sempre quem aprecie e goste de saber algo do passado contado por testemunhos das próprias vivências. São histórias de vida que muitas vezes nos mostram que vale sempre a pena sonhar. E esses nossos sonhos muitas vezes passam nos genes dos descendentes que mais tarde os concretizarão por nós, tal como o Fábio Silvestre herdou o gosto do bisavô.
Oxalá o Fábio Silvestre continue a concretizar sempre com êxito o sonho do seu bisavô!
Lourdes Henriques.
Esta história fez-me recuar à minha adolescência/juventude, em que eu era "um doido" por andar de bicicleta; claro que sempre tive só uma "pedaleira" e velha...Recordou-me a, também já velha no meu tempo, rivalidade Nicolau/Trindade; e levou-me a este poema de Alexandre O'Neil, chamado precisamente, "O Ciclista". É assim:
ResponderEliminarO homem que pedala, que ped'alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas :
tem o por vir na pedaleira.
Mas o "verso" que mais me diz, revivendo a minha tal adolescência, é esta quadra do poema "A minha bicicleta", de Miguel Bernardes:
A minha bicicleta
só tem dois pedais;
mas se monto nela
não tem dois, tem mais !
Auzendo
ResponderEliminarAmigo Dr. Eduardo João, lendo o que escreve sobre o seu tio, que tão bem conheci, imagino o prazer que sentiu enquanto relatou esta sua história. É sempre bom recordar os nossos familiares que partiram e nos deixaram tão boas recordações; por isso é salutar contar as peripécias das suas vidas, para que outros tenham conhecimento da sua existência, dos seus sonhos e da forma que estiveram na vida ... que era dura e pobre.
O Senhor João Silvestre teve um sonho, lutou por ele e fez o que pôde; o Fábio tem um sonho, como o bisavô, e está a concretizá-lo com êxito. Que continue alcançando vitórias e que o futuro lhe seja risonho, e que não esqueça o seu bisavô de quem herdou o gosto pelo ciclismo..
Maria Alexandrina