E
recordo-me de que até eu, que aos quinze anos fui para Lisboa fazer
um curso de dactilografia, deixava escapar: “o home da fruta já
chegou, posso ir lá comprar, vou só ao quarto buscar a cartera do
dinhero”. E era logo alvo de chacota, eu sabia que era “homem”,
eu sabia que era ”carteira”, eu sabia que era “dinheiro”,
tinha andado na escola, mas que havia eu de fazer? Era “saloia”…
Com
o passar dos anos tomei conhecimento de que afinal naquele tempo não
“falávamos mal”, e que as línguas têm variações, a que
chamam dialectos,
conforme a região onde se viva e as condições sociais dos
habitantes; e é conhecido o “dialecto estremenho”, ou seja, a
nossa forma de falar. Lembrei-me que era interessante recriar como
falávamos noutros tempos, e para isso inventei a história seguinte:
Um
dia, o Chico, o do Tóinho dos porcos, que vivia aqui numa aldeia do
nosso concelho,teve que ir à cidade. Já tinha dado o nome para as
sortes, e agora ia à inspecção, o serviço militar era
obrigatóiro. Rondava ele pelos dezanove anos, pegou a caminheta da
carrera que passava junto à su porta, entrou nela e quando ainda
estava a puxar pela
cartera para tirar o dinhero para pagar o
bilhete, viu que seguia na mesma caminheta o Vitro, o pai do Zé da
Adelaida e foi uma alegria tão grande que lhe disse: Ó Vitro temos
que ir boer quáquer coisa quando parar a caminheta. Na paragem
seguinte estava muita gente para entrar, e que feliz ficou o Chico ao
ver o Desamparado, o Taranta, a Maria pequena, o Zé da Bonança e o
Manel Malino…Ficou radiante o Chico, e alegremente disse aos
amigos: subirem, entrarem e sentarem-se ao pé de mim, assim tinha
conversa para todo o caminho, conversa puxa conversa e ele ficou a
saber que eles iam para um consulta ao médeco a Lisboa,
Foto de: gloriasdeoutrostempos.blogspot.com |
Atão
rapaz como vai o tê pai, e tu mãe e tês irmãos? perguntou a
Maria. - O mê pai vai bem, inha mãe é que tem quáquer mal no pêto
que anda chea de dores, cóitada, e mês irmãos esses tão bem, a
gente semos muitos mas demo-nos todos bem. De repente, o Chico tira o
farnel que a mãe lhe tinha arranjado, porque a viage, era longa e
pondo o pão sobre o guardanapo mais o bocado de toucinho curado,
convidou os amigos: “Comerem, na forem embora sem comer”.
Lá
na minha aldea - dizia o Chico - andam por lá tantas touperas,
cóitadas, elas na fazerem mal, mas o chão está todo ós montes de
terra, e os cães na nos deixem dormir é só ladrar, ladrar. O
Jaquim do Gato anda memo mal, a modos que lhe apareceu um mal de
pele, que o home tem tido um fervor que na s’auguênta, ele e
mulher já forem a tantos doitores e ná mei de passar. Na alembra ao
diabo tal mal.
Assim
conversando e rindo chegaram à cidade, onde o Chico ia pela primera
vez. O Vitro, que vivia em Lisboa, tinha ido para lá como marçano e
por lá ficou, quis acompanhá-lo. O Chico nunca tinha visto um
electro e ao passar no Terrero do Paço, ele olhou para o ri Tejo e
exclamou: - ó Vitro, olha que poço tão grande cheio dáugua.
Vitóira,
Vitóira e acaba a históira.
Maria
Alexandrina
Muito divertido! Gostei muito.
ResponderEliminarFilomena Sousa
Amiga Alexandrina, acabo de ler a eu escrito e mais uma vez não posso deixar de lhe agradecer estes momentos de verdadeiro prazer que a sua prosa me transmite. Claro que não é só o conteúdo, do qual não tenho vivência, que acho muito bem romanceado, mas sobretudo os sentimentos que ele me transmite e que me fazem sentir reconfortado. Esta sua história é um hino à amizade e confraternização que a sociedade actual , atropelada pela dita competitividade e modernidade, hoje torna as relações globais em autênticas farsas de consenso, conciliação e concordância.
ResponderEliminarFalar como é timbre e hábito das várias regiões não é sinal de ignorância ou incapacidade cultural, é antes um traço da diversidade linguística deste nosso País secular que tem o privilégio de ser múltiplo na sua diversidade ( cultural, paisagística e humana ).
Falar "à nossa moda" é algo que mantém a nossa identidade local que é uma riqueza integradora da nossa própria vida.
VIVAM AS DIFERENÇAS, PARABÉNS A QUEM AS MANTÉM VIVAS.
Amiga Alexandrina
ResponderEliminarEste seu texto é mais um testemunho do passado que a pouco e pouco vai desaparecendo.
É muito curiosa a forma como descreve esta sua história e na verdade falar à "moda da terra" não tem que ser forçosamente prova de ignorância ou falta de cultura. Já ouvi da boca de pessoas altamente qualificadas, muito cultas, inclusivamente professores universitários, "grandes deslises" que mais não são do que "falar à moda da sua terra". Cada região tem o seu dialecto e há que manter as nossas raízes culturais e regionais.
Concordo com o Manuel Augusto quando diz que "Esta sua história é um hino à amizade e confraternização". Actualmente está tudo bastante danificado, falso, não confiável. Amizades e confraternizações balofas.
E quem ainda as tiver reais e sinceras, não as deixe fugir, porque essas são são substituíveis.
Um abraço da amiga
Lourdes.
Lindo, Lindo, na minha aldeia: Serreira, também tínhamos a nossa própria prenuncia e utilizava-mos muitas adaptações às palavras correntes. A Florinda era a Forinda a Gertrudes a Estrudes a Adelaide a Delaide o Manuel o Manel o Zei o Joquim e outros tantos.E quando eu com catorze anos fui trabalhar para Torres Vedras e comecei a adaptar-me a corrigir as palavras, na minha aldeia foi o fim, tive que aturar os velhos.Coisa doutros tempos.
ResponderEliminarComadri, Alexandrina
ResponderEliminar“Gosti muitíssemo da sua estóira, e pensi logo pôri aqui uma arenga. Ê nã quero que fique pensando máli de mim, ê nã quero ofendêri vomecê. Vossemecê é uma magana!
Ê nã sê adondi vou chegar com esta arenga… por adrego a nha cabeça anda almariada misturando o saloio mais o lentejano e daquinada ninguém dá lido isto. Por hoje tem avondo,
vou abalári, ofertando estes versos ciente que vai gostári:
"Terra de grandes barrigas,
Onde há tanta gente gorda,
Às sopas chamam açorda
E à açorda chamam-lhe migas;
Às razões chamam cantigas,
Milhaduras são gorjetas,
Maleitas dizem malêtas,
Em vez de encostas, chapadas
Em vez de açoites, nalgadas
As bolotas são boletas.”
Valeu, Alexandrina. Como se vê pelo que depois do texto veio, e do que ainda virá, todos nós temos a nossa “caminheta”… Só que poucos são os que têm a disponibilidade, a coragem e a arte de a fazer chegar ao destino certo… Acho que para fazer este texto foram mesmo necessárias muita disponibilidade, muita coragem e muita arte, não sei dizer qual delas em maior grau. O que abunda nuns, falta noutros, "Deus assim o quis", que fazer?
ResponderEliminarE pra não me pôr práqui a repetir o que já estou farto de dizer, digo simplesmente que ao menos este bocadinho deste “falar sobralense” não se perderá mais. Para além do prazer que dá a ler, este texto vale também por isso: perpetua um dos "pequenos tesouros” que outros não se preocupam em recolher… e guardar.
Texto que, como disse alguém faz tempo (quem terá sido?) está lindo de morrer.
Auzendo
Para ser sincera não sei bem de qual bazófia gostei mais.
ResponderEliminarA da Inês fez-me rir com uma daquelas gargalhadas que faz bem à mente e areja os pulmões.
A da Alexandrina faz parte das minhas memórias de criança pois é da minha região e ouvi muita gente a falar assim.
Parabéns então as duas que muito bem transcreveram o falar do nosso povo que é o melhor e o mais genuíno que nós temos.
Retiro o termo bazóia,porque isso têm alguns políticos e outros tais que se julgam muito letrados.
Manuela
Estou aqui de novo para dizer que também eu, tal como a Manuela, quero agradecer à Alexandrina e à Inês os bons momentos hilariantes que me provocaram com estas formas de falar tão engraçadas.
ResponderEliminarObrigada por estes momentos tão divertidos.
Beijinhos às duas da
Lourdes Henriques.
Ainda hoje, no concelho do Sobral, nos podemos cruzar com um "linguajar" semelhante ao que tão bem retrata. Que não se perca a sua memória. No entanto, a "universalidade" da comunicação atual também abre horizontes inimagináveis há bem poucos anos. Saibamos também aprecia-la.
ResponderEliminarGrato pelo belo texto.
D. ALexandrina o seu texto fez-me sorrir com vontade. Eu faço parte do rancho de Fetais, e não imaginam como é difícil que os rapazes e raparigas nas actuações e demonstrações de folclore e etnografia que fazemos consigam falar como os nossos antepassados. De facto, muitas vezes nos esquecemos que retratamos os vestuário, os utensílios, usos e costumes do povo, por isso deveríamos também falar como eles e não é nada fácil.
ResponderEliminarRecordo-me de há 2 anos num festival de Folclore na Trofa onde eu mesma fui apanhada pelas câmaras e ouve-se com nitidez a minha voz dizendo 'atão Ti Maria, o coêlho que a nha mãe levou já cobriu a su coêlha?' na altura foi 'um fartote de rir' mas a verdade é que não podia ter sido mais genuíno e o exemplo ficou e desde aí omais não seja porque se lembram dos coelhos lá vai surgindo uma conversa mais saloia.
Orgulhamo-nos de o ser e de sempre frisar: Somos saloios, mas não somos parvos!
Bem hajam* Cumprimentos
Hortense Bogalho
Já que utiliza a expressão “saloio” reparo que é um termo em desuso, assim como “região saloia” substituída atualmente por “região oeste”, talvez por ser muito mais abrangente. Parece-me desejável recuperar “região saloia” para definir esta região oestina mais próxima de Lisboa que apresenta claramente uma identidade definida.
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ResponderEliminarAo escrever este texto fi-lo sem nenhuma convicção, embora com empenho e as palavras foram surgindo e fui-me entusiasmando. Ao ler o comentário da Professora Filomena, pensei para comigo: “Afinal não deve estar assim tão mau”, Senti-me muito honrada por uma pessoa tão conhecedora do assunto ter gostado do meu texto.
O Manuel Augusto e a Lourdes são amigos, por isso não estranhei que tivessem gostado. Surpreendeu-me o Sr. Carlos Santos pelo seu comentário que até deu uma achega com o seu linguajar da Serreira. A inha comadri Inês, lá misturou o seu alentejano ao estremenho e fez um divertido comentário.
A Manuela viveu como eu esta forma de falar: além de vivermos no Sobral, trabalhamos ambas onde atendíamos pessoas do meio rural e com quem aprendemos muito. Cs conhece a nossa região, e posso dizer-lhe que ainda a semana passada, num café, eu ouvi uma pessoa dizer “sentarem-se”, está enraizado este linguajar.
Minha querida Drª. Hortense, na sua terra falava-se assim, pode crer, eu cheguei a levar o meu coelho para cobrir as coelhas das vizinhas, e tínhamos que estar atentas para ver se o animal tinha cumprido a sua missão. É verdadeira essa sua frase tão engraçada. Meu caro professor Auzendo, se eu tivesse tanta “arte” não estaria limitada só ao Blogue Sobral Sénior … Mas faz-se o que se sabe.
Um abraço para todos
Maria Alexandrina