Ao lembrar coisas do
meu passado é obrigatório homenagear alguém que também foi muito
importante na minha vida e na vida de muitas adolescentes e jovens do
Sobral.
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Fernanda Vale |
Havia uma nesga nos telhados que nos deixava ver, nas
soalhentas tardes de verão, os filhos dos Condes Sobral, tomarem
banho na piscina, coisa única na vila. Nós fazíamos despiques e
sorteios a ver quem ficava com quem, tudo muito secreto e, ao mesmo
tempo, divertido. A D. Fernanda ajudava à festa e até a D.
Marquinhas dava as suas dicas. Nessa janela havia também um
aparelhómetro muito rudimentar, que servia para medir a humidade
atmosférica e a quantidade de chuva caída durante a noite,
informação essa que a D. Marquinhas enviava para o Instituto
Meteorológico, não sei bem, nunca percebi para que era
aquilo, mas que era esquisito e artesanal lá isso era.
Do lado direito da
porta de entrada havia o escritório com uma secretária e vários
armários repletos de livros que eu, muito dada à leitura, ia
devorando a pouco e pouco. Daí passava-se ao quarto da D. Fernanda e
da filha Maria Fernanda, nossa colega da escola primária, e também
da D. Madalena Vale quando vinha de Lisboa, onde era modista de gente
fina. Esta era a família Vale. Aquela casa para nós era uma
universidade do conhecimento, pois nela ouvíamos falar francês,
ouvia-se história universal, ciências, fazia-se teatro, um
bocadinho de pintura e, sobretudo, aprendia-se a viver, era uma
escola de vida autêntica, de quem já tivera melhores dias e que
agora vivia dos enxovais das noivas, que eram bastantes graças a
Deus. Pelo Carnaval abriam-se os baús que estavam no quarto da D.
Fernanda – bem! era demais……….
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"Abertura dos baús" - Carnaval 1945 |
Lembro-me que aos
domingos, à tarde, tirávamos à sorte, com moeda ao ar, junto do
coreto da praça, aquela que se atrevia a entrar no café
Central, estabelecimento só para homens, para comprar chocolates ou
chupa-chupas, tudo sob o olhar cúmplice da nossa preceptora e amiga
D. Fernanda e lá íamos felizes para o passeio pelo campo.
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Frequentadoras Casa dos Vale - 1955 |
Bem, já vos falei dos
meus amigos Jãojão e Catila; da queridíssima D. Mariana e agora
falo-vos da minha professora de bordados e de tantas outras coisas
preciosas, D. Fernanda Vale. Havia muita coisa a dizer dessa casa mas
o tempo urge e o pensamento voa…… hoje, as recordações
doem-me no peito e no espírito e deixam-me um sabor amargo na boca.
É melhor ficar por aqui. Falar mais desta Senhora é como se fosse
possível viver tudo outra vez e hoje eu não quero recordar mais.
Tive ou não uma infância, adolescência e juventude felizes?
Faz-me muita pena pensar nos jovens de agora. Mal nascem são
logo velhos, sem culpa nenhuma, apenas porque a velocidade com que se
vive agora não lhes dá tempo para serem novos e também porque não
existem Mestres como no meu tempo. Talvez esse seja o segredo da
minha juventude que já vai nos setenta anos.
Bem hajam todos os meus
mestres. Bem haja a “casa dos Vale”
Mimi
Mimi
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ler o que escreve, é pena que escreva tão pouco para nós. Tem uma maneira tão elegante de descrever as suas personagens que me apaixona a leitura. Neste caso especial até me comovi, lembrando aquelas senhoras que nos davam tanto, e que tantos conhecimentos tinham… e como lhes era difícil a vida!
Tudo tão bem descrito que até me sinto, eu também, naquela curva da escada cujos degraus rangiam, a saltar alguns em claro, por me incomodar o barulho e ali era tão escuro… coisas de adolescentes.
Li alguns autores portugueses da biblioteca da D. Fernanda mas, talvez por ser mais adequado à minha idade, ficou-me sempre na memória a “Poliana” ou” Poleana”, ou nem duma maneira nem doutra, também não interessa muito o nome, o que me interessou foi o conteúdo, a forma de uma criança ver sempre o lado feliz da vida. Ela jogava sempre o jogo do contente. E era tão bom tentar imitá-la, numa época em que tínhamos todos tão pouco.
A D. Fernanda sempre muito delicada, transmitindo-nos a sua educação, que se via que tinha tido sido esmerada; e quando nos fazia desmanchar alguns pontos que tinham sido dados mais à pressa (o que eu detestava ter de fazer) era sempre de uma forma branda e delicada. No entanto, era uma pessoa com uma visão moderna da vida e aceitava as “loucuras” da nossa juventude. Recordo a D. Marquinhas, que além de fazer render o pouco dinheiro que tinha para administrar a casa, tinha paciência para nos aturar; e a Senhora D. Adelaide!... Que amor de velhinha!
Que boas recordações me trouxe Mimi. Felizmente ainda temos a Maria Fernanda, que era mimada por todas as mulheres da casa, por ser o último rebento da Família Vale. Em minha casa sempre se falou com o maior respeito pelo Sr. Vale e por toda a sua família. Eram pessoas muito respeitadas e eu sempre achei de que esta família também contribuiu para a minha formação.
Maria Alexandrina
A Mimi, e depois também a D. Alexandrina, presentearam-nos com um relato emocionado das suas recordações "mágicas" da Casa Vale, e enfatizaram o relevante papel social que a D. Fernanda (e família) teve nas suas vidas e de muitas outras jovens do Sobral. Mas daquilo que tenho ouvido de pessoas desse tempo, parece que posso concluir que a Casa Vale foi bastante mais do que isso: foi como que uma “escola”, quase institucionalizada, para outras gerações de jovens sobralenses, e não apenas para o grupo, fotografado, em que se integrou a Mimi. Antes e depois desse grupo houve mais, é essa a ideia que tenho.
ResponderEliminarCreio que não deve haver muitos casos similares por esse País fora, tendo especialmente em conta que era uma família que até vivia com algumas dificuldades financeiras. E hoje, Mimi, pensar uma situação idêntica é quase surreal...
José Auzendo
Já tinha pensado escrever sobre esta família, a Mimi já o fez e muito bem. Eu, como estou na casa dos 80,comecei mais cedo a frequentar essa casa, e por lá passaram várias gerações: era de bom tom as meninas irem aprender a bordar.
ResponderEliminarEsta família compunha-se do pai, o Sr. Júlio Leite Vale, aposentado da Junta Autónoma das Estradas e agente de seguros, a mulher Adelaide Pulquéria Leitão Vale, e três filhos: a D. Maria, a D. Fernanda e o Carlos Vale, jornalista, um revoltado contra o Governo de então: morreu muito novo de tuberculose. Sempre conheci o Sr. Vale invisual: ele descia as escadas e ficava à porta à espera que alguém o levasse à barbearia do Sr. Serreira ou à farmácia Costa, onde passava as tardes. Todas as crianças o ajudavam de boa vontade: o meio tostão vinha sempre para o famoso matacão.
Feita a apresentação desta simpática família, é bom recordar alguns momentos por mim lá passados. A D. Fernanda foi uma pessoa que acompanhou muitas gerações desde a aprendizagem até ficarem profissionais. Estas ganhavam quatro escudos por dia; as outras não ganhavam nem pagavam. Depois seguiam outros destinos. Foi uma senhora muito importante na formação de muitas raparigas. Recordo quando lhe levavam ovos…Ela fazia gemadas e batia as claras em castelo com açúcar e canela: chamava a isto rápido e barato.
Além dos bordados, era uma senhora muito actualizada. Lembro-me, no tempo da guerra, de ela ir comprar o jornal e, depois, explicar-nos as notícias…
Lisete